A viagem começa numa estrada longa, com a equipe seguindo o mapa de tiroteios que marcaram escolas de diferentes estados. É só depois da primeira parada que o espectador descobre que aquele percurso tem um nome, “Quartos Vazios”, e um propósito delimitado: registrar, com calma desconfortável, os quartos de crianças mortas por armas de fogo em ambientes escolares. Steve Hartman conduz as conversas com os pais; Lou Bopp observa tudo pela lente; o diretor Joshua Seftel decide permanecer quase sempre atrás da câmera. O conflito central está na tentativa de transformar espaços íntimos, congelados pelo luto, em argumento visível contra uma rotina nacional de violência armada que parece infinita.
Em certo momento, o filme passa a alternar com mais frequência entre interiores e exteriores, entre estradas abertas e corredores apertados. A montagem segue a viagem geográfica, mas também embaralha os estados, as religiões, as classes sociais, insistindo em mostrar que o padrão se repete com variações mínimas. Um pai religioso insiste em manter a cama feita; outra mãe transforma as paredes em mural de recados. O objetivo do trajeto muda um pouco a cada parada, deslocando o foco da vítima isolada para a repetição institucional que torna esses quartos intercambiáveis.
Na sessão de terça, a sala estava quase vazia. Três adolescentes. Um casal. Uma senhora sozinha. Ninguém cochichou. Ninguém tirou o celular. O silêncio depois dos créditos pareceu tão espesso quanto os quartos mostrados na tela. Essa recepção contida combina com o filme. Nada de catarse. Nada de alívio. Apenas a constatação de que aquelas portas fechadas pertencem, também, a quem saiu do cinema em silêncio.
É um documentário sobre quartos, ou melhor, sobre o que continua a ocupar esses quartos quando a vida foi interrompida à força. A cada visita, Hartman precisa escolher entre insistir numa pergunta ou recuar diante de um olhar cansado; quase sempre recua, e essa recusa de espetacularizar a dor interfere na quantidade de informação que o espectador recebe. Seftel aceita esse limite e aposta no tempo do silêncio, mantendo a porta enquadrada por segundos a mais, até o desconforto se instalar de vez.
Já Lou Bopp enfrenta outro tipo de dilema. Seu trabalho é transformar esses espaços em imagens memoráveis sem transformar a tragédia em catálogo decorativo. A solução aparece na repetição calculada de certos enquadramentos: portas semiabertas vistas do corredor, prateleiras com brinquedos milimetricamente alinhados, cartazes de times e bandas ligeiramente desbotados. Nas raras ocasiões em que a câmera se move pelo quarto, o movimento é lento, quase hesitante, medindo a distância correta entre intimidade e invasão. O risco de estetização persiste, mas o filme o assume e, em grande parte, o administra com sobriedade.
Quando a rota entra em estados onde a discussão sobre armas é ainda mais acirrada, o documentário ganha uma dimensão política explícita. Não por discursos inflamados, e sim pela presença concreta de cartazes de campanhas, bonés com slogans, conversas sobre eleições ao fundo. Em uma das casas, o pai afirma, diante da câmera, que continua defendendo o direito de portar armas, mesmo depois de perder o filho. A decisão da equipe de manter esse depoimento, sem comentário em off, altera o equilíbrio do filme e expõe uma contradição que dispensa explicação analítica.
Ao mesmo tempo, o percurso revela a limitação de uma abordagem que depende da disponibilidade das famílias. Muitas são ativistas, acostumadas a falar com a imprensa, e isso produz declarações eloquentes, por vezes ensaiadas. Outras só aceitam mostrar o quarto em troca do compromisso de não filmar o rosto. O documentário negocia caso a caso, e o resultado é desigual, mas essa desigualdade comunica algo concreto sobre quem tem voz na conversa pública e quem prefere permanecer atrás da porta fechada, protegendo um silêncio que ninguém tem direito de violar.
Comparado a “Tiros em Columbine” ou a “Elefante”, o filme abdica de reencenações, humor ácido ou artifícios narrativos mais vistosos. A escolha é clara: reduzir o movimento ao mínimo, confiar nos objetos, nas cores de parede, na ausência física das crianças. Isso tem custo dramático. Em alguns trechos, a repetição de quartos semelhantes e depoimentos parecidos dilui o impacto, e o espectador sente o peso de um percurso que insiste em não oferecer alívio, nem mesmo na trilha sonora, mantida quase sempre em volume discreto.
O ponto de maior risco está numa parada em que a equipe encontra uma mãe exausta, cercada por processos judiciais, entrevistas, convites para falar em comícios. Ali, o documentário precisa decidir se acompanha a transformação da dor em capital político ou se permanece fiel ao projeto inicial de olhar apenas para o quarto. Seftel opta por filmar as duas coisas e monta a sequência de modo a deixar claro o custo pessoal dessa exposição contínua, sem precisar sublinhar nada em palavras.
Se “Quartos Vazios” às vezes se aproxima perigosamente da repetição, esse efeito também produz algo incômodo e eficiente: a sensação de catálogo infinito, de corredor que nunca termina. Cada nova porta aberta deixa de ser apenas mais um caso e se torna prova estatística da falha coletiva em interromper a sequência. O filme não oferece solução mágica, nem se propõe a formular grande tese. Prefere apontar para aquilo que qualquer visita de poucos minutos consegue registrar, desde que alguém decida entrar, olhar e, por alguns instantes, escutar o silêncio.
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