A porta de vidro emperra um pouco, fazendo o sino velho demorar um segundo para anunciar que alguém entrou. É fim de tarde em uma livraria de rua de Brasília, um corredor de estantes compactas espremido entre uma papelaria e uma casa de fotocópias. Atrás do balcão, o livreiro confere boletos no computador quando repara num rapaz parado diante da seção de literatura estrangeira, segurando um volume fino com um prédio em ruínas na capa. “Pergunte ao Pó”, lê em voz baixa, como quem testa a sonoridade de um nome recém-chegado.
John Fante costuma entrar no Brasil por essas frestas. Não tem campanha de marketing, não aparece em lista de mais vendidos. Chega por indicação atravessada de amigo, por um comentário perdido em entrevista de Charles Bukowski, por um print de página sublinhada que circula discretamente. Quando o leitor finalmente encontra o livro na prateleira, descobre que o autor morreu em Los Angeles, praticamente cego, sem ver a própria obra ocupar o centro do sistema literário que tanto desejou cortejar.
Filho de pedreiro italiano e mãe devota, Fante escreveu obsessivamente sobre a experiência de crescer num país que promete tudo, mas parece negar o suficiente. “Espere a Primavera, Bandini” recua ao interior gelado do Colorado; “O Caminho para Los Angeles” acompanha o jovem antes da metrópole; “Pergunte ao Pó” o instala na Bunker Hill poeirenta; “Sonhos de Bunker Hill” o leva aos estúdios de cinema, já mais velho e cansado. Em “A Irmandade da Uva”, outro narrador encara o pai pedreiro, o vinho, a culpa, a ternura envergonhada.
A reorganização desses livros dependeu de decisões editoriais bem concretas. Nos anos 1980, a Black Sparrow Press começou a reeditá-los com tiragens modestas, enquanto Bukowski espalhava, em entrevistas e dedicatórias, a ideia de que Fante era “meu deus”. A combinação de culto e catálogo coerente fez o resto. Críticos passaram a enxergá-lo como elo esquecido entre o romance urbano dos anos 1930 e o realismo sujo de pós-guerra, ponto de contato entre ambição literária e subemprego, fé católica e ressentimento de classe.
O que torna essa história menos arqueológica e mais urgente é o modo como esses romances encontram ressonância num país como o Brasil, em 2025, numa cidade planejada e desigual como Brasília. Os quartos baratos, os pais exaustos, o trabalho precário, a sensação de que o sucesso é promessa feita para outro se repetem, com sotaque diferente, nas biografias de quem circula por aquela livraria de rua. Quando o rapaz do início finalmente leva o livro para o caixa, o livreiro comenta, quase envergonhado, que foi justamente “Pergunte ao Pó” que o fez, anos atrás, continuar abrindo a porta emperrada. Talvez seja isso que explique por que Fante insiste em voltar: não oferece consolo, apenas a estranha solidariedade de alguém que já escreveu, com raiva e humor, a experiência de falhar.

Enclausurado numa cidade portuária que considera pequena demais para os seus planos, um jovem filho de imigrantes italianos passa os dias entre um emprego tedioso, a convivência sufocante com a família e uma pilha de livros que devora com avidez nervosa. A rotina é pontuada por explosões de impaciência, discursos inflamados contra a mediocridade à sua volta e ataques de vaidade em que se imagina um gênio incompreendido destinado a horizontes bem maiores. Ele escreve páginas furiosas, rasga o que acabou de produzir, vaga pelas ruas e pela praia em busca de sinais de que não está condenado à mesma vida de frustração que enxerga ao redor. A relação com a mãe e a irmã mistura afeto, irritação e culpa, enquanto qualquer tarefa doméstica parece um obstáculo entre ele e o futuro glorioso que idealiza. Nesse período de incubação, a cidade se transforma em símbolo de tudo aquilo que deseja abandonar, e o desejo de partir para a metrópole se confunde com a necessidade de criar uma obra que justifique a fuga. A narrativa acompanha o amadurecimento ainda embrionário de um rapaz que começa a perceber que a própria arrogância também é uma forma de prisão. Ao observar esse conflito entre desejo de grandeza e incapacidade prática de agir, o relato revela o momento em que a vontade de escrever deixa de ser apenas fantasia de superioridade e começa, timidamente, a se insinuar como trabalho real a ser encarado.

Um escritor em formação abandona os quartos baratos e os restaurantes de segunda para se aproximar do universo dos estúdios de cinema em Los Angeles, convencido de que finalmente terá a chance de provar o próprio talento. Em vez do glamour sonhado, encontra salas estreitas, contratos nebulosos e tarefas que consistem em ajustar diálogos, reescrever cenas alheias e produzir emoções sob encomenda para produtores apressados. A cada encontro profissional, percebe que sua ambição de grande literatura precisa negociar espaço com prazos, orçamentos e caprichos de executivos que tratam histórias como mercadoria descartável. Fora dos estúdios, a vida se desenrola em bares, apartamentos emprestados e ruas inclinadas, onde o passado de pobreza ainda lança sombra sobre a nova rotina. Relações amorosas instáveis, amizades oportunistas e promessas de sucesso que evaporam compõem um cotidiano em que nada parece sólido. Narrada em primeira pessoa, a trajetória acompanha esse movimento de ascensão ambígua, no qual o protagonista se aproxima do centro da indústria ao mesmo tempo que sente a própria voz se diluir. O livro registra o momento em que ele intui que talvez precise escolher entre confortos imediatos e uma fidelidade mais profunda àquilo que o levou a escrever. Nesse processo, a experiência de circular entre roteiros descartáveis e conversas vazias acaba funcionando como um laboratório às avessas, em que ele aprende, dolorosamente, o tipo de escritor que não deseja se tornar.

Um escritor de meia-idade que vive perto do mar é forçado a interromper a rotina relativamente confortável quando recebe a notícia de que os pais, já idosos, falam em se separar. O retorno à cidade natal significa reencontrar o pai pedreiro, orgulhoso e alcoólatra, cuja presença autoritária marcou a infância com uma mistura de admiração e ressentimento, e rever a mãe, cansada e devota, que parece dividida entre o dever e o desejo de descanso. À medida que os dias avançam, tarefas aparentemente simples, como acompanhar o pai em um trabalho, compartilhar refeições barulhentas ou resolver pequenos consertos domésticos, ganham o peso de acertos de contas antigos. Piadas grosseiras, explosões de cólera, silêncios prolongados e gestos súbitos de cuidado compõem um convívio em que carinho e violência simbólica se entrelaçam. O narrador percebe que, apesar da distância física e do sucesso profissional, nunca deixou de ser filho e continua preso a lealdades e culpas que julgava superadas. A história acompanha essa estadia temporária que se torna um mergulho na memória, enquanto ele tenta compreender o que pode ser resgatado daquela relação com o pai e o que precisa, enfim, ser deixado para trás. Nesse convívio forçado, a visita que parecia apenas um dever incômodo se transforma numa oportunidade tardia de enxergar o pai como homem falho e vulnerável, não apenas como tirano doméstico, e de decidir que tipo de herança afetiva deseja carregar adiante.

Um jovem escritor ítalo-americano chega a Los Angeles trazendo na mala quase nada além de orgulho, fome e um caderno de anotações. Instalado num hotel decadente em Bunker Hill, ele tenta sobreviver com café ralo, laranjas baratas e cheques que nunca chegam, enquanto escreve histórias na esperança de ver o nome impresso em uma revista qualquer. A cidade, coberta de poeira e luz dura, aparece como promessa de glória e, ao mesmo tempo, como cenário diário de constrangimentos materiais, cartas sem resposta e humilhações miúdas. Entre visitas ao editor, caminhadas febris pelas ruas do bairro e encontros com uma garçonete mexicana que o fascina e o desafia, ele descobre que o desejo de ser grande escritor convive com impulsos mesquinhos, ciúmes, preconceitos e um medo constante de fracassar. A voz em primeira pessoa transforma cada derrota num relato carregado de ironia e ferocidade, sem poupar ninguém, muito menos o próprio narrador. A escrita funciona como último abrigo, forma de organizar a miséria à volta e dar sentido a experiências que, vistas de perto, parecem apenas ridículas ou dolorosas. Aos poucos, o leitor acompanha o movimento desse homem entre vaidade e desamparo, observando como a ambição literária, colocada à prova pela pobreza, expõe uma sensibilidade mais frágil e mais comovente do que o protagonista está disposto a admitir. À medida que avançam os dias, a fronteira entre o que ele vive e o que inventa se torna cada vez mais tênue, e o impulso de transformar cada humilhação em literatura passa a ser a única forma possível de permanecer na cidade sem sucumbir ao desespero.

No interior gelado do Colorado, uma família de imigrantes italianos atravessa um inverno em que o dinheiro falta, o trabalho escasseia e qualquer pequeno conflito ameaça se transformar em ruptura. O pai, pedreiro orgulhoso e impulsivo, procura serviço quando a neve paralisa as obras e vê na bebida uma espécie de consolo precário; a mãe, religiosa e exausta, tenta manter a casa de pé com fé, economia e um senso obstinado de dever. No centro desse cenário, o filho adolescente observa o casamento dos pais perder o verniz idealizado e passa a notar rachaduras que antes preferia ignorar. A escola, a igreja e o futebol oferecem algum alívio, mas também o expõem ao preconceito, à vergonha da pobreza e ao desejo contraditório de pertencer e fugir ao mesmo tempo. Entre discussões à mesa, humilhações silenciosas e pequenos gestos de ternura, ele descobre que amadurecer significa reconhecer a fragilidade das figuras que antes pareciam inabaláveis. O inverno, com seu frio persistente, funciona como moldura de um período em que nada floresce por fora, mas muita coisa se remexe por dentro, enquanto o rapaz aprende a nomear a própria revolta e a transformar a experiência familiar em matéria de imaginação. Ao acompanhar as dúvidas desse rapaz entre a lealdade ao lar e o impulso de romper com tudo, o romance capta o instante em que a experiência familiar deixa de ser apenas fardo e começa a se transformar em material de reflexão e, potencialmente, de criação.
