O primeiro impacto de “Veludo Azul” não está nas cenas de violência ou na atmosfera inquietante, mas na sensação de que algo banal, quase doméstico, pode carregar uma fenda moral que ninguém deseja enxergar. A história começa com Jeffrey Beaumont, vivido por Kyle MacLachlan, voltando para Lumberton após o colapso do pai. Essa volta à cidade natal, tão compacta em suas rotinas, desperta nele uma curiosidade quase infantil, mas também uma estranha disposição para investigar o que lateja sob o verniz suburbano. Quando encontra uma orelha humana abandonada num terreno vazio, o gesto trivial de se abaixar para observar transforma-se no ponto de ruptura que o conduz ao apartamento carregado de medo e desejo de Dorothy Vallens, interpretada por Isabella Rossellini. É nesse espaço, tão claustrofóbico quanto íntimo, que ele percebe o quanto ignorava sobre a própria disposição para atravessar limites.
A relação de Jeffrey com Dorothy nasce menos de coragem e mais de fascinação. Ela vive aprisionada por uma circunstância que envolve seu marido, seu filho e, sobretudo, Frank Booth, interpretado por Dennis Hopper, cuja presença domina o filme como um pesadelo lúcido. Frank não é apenas cruel; sua lógica interna parte de uma mistura de delírio e rotina, como se sua brutalidade tivesse horário marcado. Ao seguir essa trilha, Jeffrey se coloca diante de um circuito de violência que ele não compreende por completo, mas encara com uma insistência que beira o autoengano. Paralelamente, Sandy, vivida por Laura Dern, funciona como uma espécie de bússola moral: uma jovem que recusa o mergulho no abismo, mas que acompanha Jeffrey com um misto de inquietação e lealdade. Ela enxerga o perigo que ele insiste em racionalizar, ainda que o acompanhe até certo ponto.
O filme se desenvolve como um estudo sobre a convivência entre o conforto burguês e a pulsão destrutiva que habita seus porões. David Lynch torna esses contrastes quase palpáveis: a grama aparada, as cercas bem alinhadas, tudo parece compor uma normalidade que não suporta inspeção. E Jeffrey, ao insistir nessa inspeção, revela o quanto a curiosidade pode ser sedutora quando se confunde com um desejo mal assumido de pertencer ao caos que se pretende desvendar. A câmera de Frederick Elmes acompanha esse percurso como se tivesse consciência do risco; cada cenário reaparece mais carregado de significado, como se os lugares acumulassem a tensão de tudo o que testemunharam.
A música composta por Angelo Badalamenti amplifica essa transformação. A voz de Dorothy, o piano que insiste em circular entre melancolia e ameaça, e os clássicos dos anos 50 que atravessam as cenas criam uma sensação de deslocamento constante. É como se a trilha insistisse em lembrar que aquela aparente normalidade só é suportável porque foi construída sobre silêncios incômodos. Quando Dean Stockwell surge interpretando Ben e sincroniza seus lábios ao som de Roy Orbison, o efeito é tão específico que parece desmontar qualquer fronteira entre humor, perversidade e ritual.
“Veludo Azul”, ao final, recusa a ideia de redenção plena. Jeffrey retorna ao convívio de Sandy, a cidade volta a sorrir e as rotinas retomam seu curso. Ainda assim, permanece a impressão de que ninguém retorna ileso a uma investigação tão íntima do que preferia não conhecer. A história funciona como um lembrete incômodo de que a normalidade não se mantém por ausência de monstros, mas pela disposição coletiva de fingir que eles não vivem ali. O que Jeffrey descobre, e que o espectador não consegue esquecer, é que a escuridão não está fora dos limites da vida cotidiana; ela apenas espera a oportunidade certa para ser notada.
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