James Joyce ao microfone: o registro histórico em que o autor lê um trecho de Finnegans Wake

James Joyce ao microfone: o registro histórico em que o autor lê um trecho de Finnegans Wake



A gravação começa com um chiado breve e, em seguida, a voz grave de um homem que parece cantar mais do que declamar. Em pouco mais de dois minutos, James Joyce lê em inglês um trecho de “Anna Livia Plurabelle”, registrado em agosto de 1929 em um estúdio de Cambridge. Hoje o áudio, antes preso a discos frágeis, circula em arquivos digitais e plataformas de áudio, acessível a quem quiser ouvir como o escritor modulava a própria prosa.

Por trás daquela voz há décadas de biografia e de experimentos formais. Joyce nasceu em Dublin em 1882, estudou em colégios jesuítas, viveu em Trieste, Zurique e Paris, mas manteve a cidade natal como centro imaginário de sua obra. Publicou “Dublinenses”, “Retrato do Artista Quando Jovem” e, em 1922, “Ulisses”, romance que acompanha um único dia em Dublin e lhe trouxe processos, proibições e fama de escritor escandaloso, antes de se consolidar como referência do modernismo literário.

Depois de “Ulisses”, Joyce passou a trabalhar em um projeto ainda mais radical, que divulgava em fragmentos sob o nome provisório de Work in Progress. Esse trabalho, iniciado em 1922, só seria publicado integralmente em 1939 com o título “Finnegans Wake”. A seção conhecida como “Anna Livia Plurabelle” já circulava isolada em revistas e livretos quando o convite para a gravação surgiu, despertando interesse por concentrar as apostas do novo livro em poucas páginas.

O linguista e filósofo C. K. Ogden, envolvido em debates sobre linguagem simplificada e ensino do inglês, enxergou naquela prosa experimental um material adequado para registro sonoro e convidou Joyce a ler em um estúdio ligado à Orthological Society, em Cambridge. A editora Sylvia Beach, responsável pela primeira edição de “Ulisses” em Paris, encampou a ideia e ajudou a viabilizar a sessão, rara chance de registrar em disco um autor com problemas crônicos de visão.

O trecho escolhido não é marginal dentro de “Finnegans Wake”. “Anna Livia Plurabelle” apresenta uma figura feminina associada ao rio Liffey, que atravessa Dublin, e põe em cena vozes que falam de boatos, roupas, águas e histórias de família. A linguagem aglutina palavras de diferentes idiomas, multiplica trocadilhos e cria termos híbridos que parecem escorrer como correnteza. Na página, essa combinação pode intimidar; ouvida na voz de Joyce, ganha contorno de fluxo contínuo, em que a lógica cede espaço a ciclos de som e imagem.

A sessão de Cambridge não foi simples do ponto de vista físico. Joyce já havia passado por várias cirurgias nos olhos e enxergava pouco. Para que conseguisse acompanhar o texto, o trecho foi impresso em letras grandes, em folhas especiais. Há relatos de apoio no estúdio, alguém indicando discretamente o andamento enquanto o gravador girava. Ainda assim, a leitura que se escuta hoje é segura, com raros engasgos, o que sugere ensaio prévio e escolha cuidadosa do recorte.

Em suas memórias “Shakespeare and Company”, Sylvia Beach afirmou que a gravação de “Anna Livia Plurabelle” era especialmente bonita e divertida e destacou a forma como Joyce imitava o sotaque de uma lavadeira irlandesa. A audição atual confirma esse relato. Em vez de um tom solene, o que se ouve é um narrador que empurra as frases como quem conversa e provoca, alongando sílabas, comprimindo outras, encontrando humor nos encontros de sons. A cena à beira do rio ganha corpo pela pronúncia, não só pelo vocabulário.

O número de registros deixados pelo escritor é pequeno. Além da leitura de “Anna Livia Plurabelle”, há apenas uma gravação anterior, feita em Paris, de um trecho de “Ulisses”. Essa escassez aumenta o peso da sessão de 1929. Em vez de dezenas de entrevistas e aparições públicas, como ocorre com autores contemporâneos, o que resta de Joyce em áudio são minutos concentrados, escolhidos com cuidado, em que ele decide que versão de sua voz quer deixar para o futuro.

Para quem enfrenta as páginas de “Finnegans Wake”, o disco funciona quase como legenda sonora. Não resolve a dificuldade do texto nem oferece chave única de interpretação, mas revela opções de ritmo, acento e pausa que não aparecem de maneira óbvia na grafia. Ouvir como Joyce atravessa uma cadeia de aliterações ou aproxima duas palavras de línguas diferentes sugere que o livro foi pensado também como experiência auditiva, algo a ser dito, murmurado ou rido, não apenas decifrado em silêncio.

Ao mesmo tempo, a voz gravada de Joyce relativiza a imagem pesada que muitas vezes acompanha seu nome. O autor canônico, cercado de edições críticas, surge ali interpretando uma lavadeira com sotaque específico, brincando com trocadilhos e explorando o lado cômico do próprio texto. O contraste entre o monumento construído em torno de “Ulisses” e “Finnegans Wake” e a leveza irônica da leitura de “Anna Livia Plurabelle” devolve o escritor ao lugar de artesão atento ao som, não apenas de símbolo do século vinte.

Pensar nessa gravação em meio a milhões de arquivos de áudio acessíveis em poucos cliques é lembrar que a literatura modernista nunca foi apenas exercício de dificuldade silenciosa. Naquele estúdio de Cambridge, em 1929, um escritor de cinquenta anos, com visão precária e reputação de hermético, aceitou submeter a própria prosa a uma máquina de sulcos e agulhas. O que ficou não é objeto sagrado, mas fragmento de tempo em que texto, voz e tecnologia se cruzam e ainda emitem sinais quase cem anos depois.

Carlos Willian Leite

Jornalista especializado em jornalismo cultural e enojornalismo, com foco na análise técnica de vinhos e na cobertura do mercado editorial e audiovisual, especialmente plataformas de streaming. É sócio da Eureka Comunicação, agência de gestão de crises e planejamento estratégico em redes sociais, e fundador da Bula Livros, dedicada à publicação de obras literárias contemporâneas e clássicas.