Áudio raro de 1909 traz Tolstói lendo a obra espiritual proibida pelos soviéticos

Áudio raro de 1909 traz Tolstói lendo a obra espiritual proibida pelos soviéticos

Na tela do computador, o arquivo parece qualquer outro, um simples áudio antigo com o nome Liev Tolstói 1909. Quem clica ouve primeiro um chiado áspero, irregular, como se uma agulha arranhasse o ar. Depois, lentamente, surge a voz do escritor, grave, cansada, tentando articular em inglês uma frase que atravessa o ruído. Não há trilha, não há edição, apenas um homem muito velho, diante de um fonógrafo, falando para ouvintes que ele nunca veria.

As palavras chegam truncadas, mas ainda assim é possível reconhecer o que está em jogo. Tolstói tinha 81 anos quando, em 31 de outubro de 1909, gravou em sua casa de Iasnaia Poliana uma passagem de Pensamentos Sábios para Cada Dia. Leu o mesmo trecho em inglês, alemão, francês e russo. Ao redor dele, a tecnologia ainda era frágil, mas a intenção era clara, registrar uma mensagem espiritual destinada a atravessar fronteiras e décadas.

No curto discurso, o autor afirma que o verdadeiro objetivo da vida é o autoaperfeiçoamento e o aperfeiçoamento de todas as almas imortais. Qualquer outro fim seria secundário. Em seguida, dirige ao ouvinte uma pergunta seca sobre se está fazendo o que deveria fazer nesse tempo limitado que recebeu. Não comenta seus romances, não fala de personagens famosos, fala diretamente de conduta pessoal, como se estivesse diante de um camponês, de um funcionário, de alguém comum.

O livro do qual sai o trecho tem uma história distinta das grandes narrativas de guerra e adultério que o consagraram. Publicado inicialmente em 1903, com o título Os Pensamentos dos Sábios, ele nasceu de mais de dez anos de leituras sistemáticas. Tolstói copiou à mão, selecionou e reorganizou passagens de filósofos, pensadores religiosos e moralistas, de Laozi a Ralph Waldo Emerson. Em seu diário, escreveu que se sentia espiritualmente elevado por essa convivência e que desejava partilhá la com qualquer leitor.

O formato final de Pensamentos Sábios para Cada Dia é o de um calendário. Cada data do ano reúne pequenas passagens de autores diversos, seguidas de um comentário breve do próprio Tolstói. Em 9 de maio, por exemplo, ele aproxima Immanuel Kant, o legislador ateniense Sólon e um trecho do Alcorão para insistir que ninguém pode interromper o processo de aperfeiçoamento pessoal. Para ele, o momento em que o mundo exterior parece mais interessante que o interior indica um atraso espiritual profundo.

Esse arranjo revela a transformação da velhice. O escritor passou a desconfiar de suas grandes obras de ficção, que considerava ligadas aos interesses de uma minoria culta. Afirmava que criar um livro para as massas, para milhões de pessoas comuns, era mais importante do que compor romances que divertem por algum tempo as classes abastadas e depois são esquecidos. O calendário espiritual surgia como resposta a essa inquietação, tentativa de falar com gente que talvez nunca abrisse um volume volumoso.

Organizar o texto como calendário também foi decisão prática. Em vez de um tratado abstrato, Tolstói propôs leituras diárias curtas, que pudessem caber entre o trabalho no campo, o cuidado com os filhos, a ida à fábrica. A ideia era transformar filosofia e religiosidade em hábito cotidiano, algo que marcasse ao mesmo tempo o avanço do ano e o avanço interior. A gravação de 1909, com seu inglês hesitante e seu russo acelerado, reforça essa vocação de conversa direta, quase doméstica.

Depois da morte de Tolstói, em 1910, o livro continuou circulando, mas acabou esbarrando no projeto ideológico da União Soviética. A coletânea, associada a uma visão espiritual de mundo e a um cristianismo crítico, foi proibida e desapareceu dos catálogos oficiais por décadas. O texto sobreviveu em exemplares guardados em casas particulares, muitas vezes lidos em segredo. Na década de 1990, reapareceu em edições amplas, tornou se best seller na Rússia e voltou ao centro do debate sobre ética e fé.

Pouco depois, uma tradução integral para o inglês, com o título A Calendar of Wisdom, levou a coletânea a novos públicos. O livro entrou em catálogos de editoras religiosas e seculares, alimentou grupos de leitura, cursos de filosofia prática, clubes dedicados a clássicos espirituais. No Brasil, trechos passaram a aparecer em biografias do autor, em estudos sobre literatura russa e em coletâneas de textos devocionais. Aos poucos, o velho calendário pensado para camponeses ganhou leitores urbanos conectados a linguagens muito diferentes daquelas de 1903.

As gravações de voz seguiram percurso semelhante de esquecimento e resgate. Sabe se que Tolstói experimentou o fonógrafo ainda em 1895, gravando cilindros de cera para um empresário interessado em novidades sonoras. Mais tarde, registrou uma lição dirigida a crianças camponesas, a leitura do conto O Lobo e trechos de um ensaio em que diz não poder permanecer em silêncio diante da violência. Com a digitalização de arquivos, esses fragmentos passaram a circular em plataformas de vídeo e áudio, acessíveis a qualquer pesquisa rápida.

Escutar hoje a faixa de 1909 é confrontar não apenas uma mensagem moral, mas o próprio percurso material daquela voz. O que um dia dependeu de cilindros frágeis e máquinas raras cabe agora em um arquivo leve no celular. Apesar disso, o chiado permanece, os cortes permanecem, a dificuldade de entender cada palavra permanece. Talvez seja justamente essa imperfeição que mantém viva a pergunta de Tolstói, lançada por um velho diante de um fonógrafo, sobre o que cada pessoa faz com o pouco tempo que recebeu.