O universo de “Brightburn: Filho das Trevas” provoca uma sensação curiosa: a de acompanhar um mito conhecido se despedaçando diante dos nossos olhos, como se alguém tivesse pego o arquétipo do menino destinado à salvação e o invertido com a frieza de quem dobra uma faca sobre o próprio metal. A história de Brandon, interpretado por Jackson A. Dunn, nasce justamente desse atrito entre fantasia e angústia, e talvez seja por isso que o filme mexe com algo instintivo. Ele não se contenta em apenas flertar com o terror; prefere alimentar a suspeita de que toda narrativa de poder absoluto esconde, no fundo, uma ameaça latente.
Tori, vivida por Elizabeth Banks, incorpora esse conflito de forma quase dolorosa. A personagem passa anos sustentando uma fé inabalável nesse filho encontrado numa noite de queda estranha, como se a maternidade fosse capaz de domesticar qualquer anomalia. O problema é que Brandon, ao atravessar a puberdade, deixa escapar sinais de que sua inteligência precoce funciona mais como afastamento do que como virtude. Ele percebe, antes de qualquer adulto, que o mundo não tem meios de contê-lo. Essa descoberta não é celebrada; é convertida em ensaio de crueldade, primeiro em pequenas transgressões, depois em atos de violência que desmontam a ilusão de normalidade.
O filme opta por uma progressão direta e sem enfeites: cada evento funciona como mais uma rachadura no vínculo familiar. Kyle, interpretado por David Denman, tenta enxergar ali apenas uma rebeldia típica da idade, mas a postura vacilante denuncia um medo crescente. O pai pressente que o garoto não compreende limites, muito menos empatia. E enquanto Tori insiste em revisitar fotos antigas para recuperar algum traço da criança amorosa, Brandon já experimenta a sensação de domínio absoluto, testando suas habilidades com a indiferença de quem observa, pela primeira vez, o mundo dobrar-se diante de si.
As mortes, poucas mas meticulosamente construídas, reforçam a ideia de que o terror não depende de fantasia grandiosa, e sim de proximidade incômoda. Não há provocação gratuita; o filme prefere a violência que causa espanto por contraste, como se dissesse que o horror maior não está no poder sobrenatural em si, mas na ausência total de freios morais. Dunn abraça esse vazio emocional com uma calma perturbadora, convertendo Brandon num antagonista que não precisa gritar para impor pânico. O garoto simplesmente age, e o silêncio que antecede seus ataques é mais cruel do que qualquer rajada de força.
Em vez de explicar sua origem ou construir mitologias desnecessárias, o filme concentra energia na deterioração da relação familiar. Essa escolha ajuda a manter a trama enxuta e permite observar o terror expandir-se a partir de gestos cotidianos. A diretoria da escola, a vizinhança, a própria casa dos Breyer: tudo se transforma em palco de tensão. A dúvida central não é de onde Brandon veio, mas o que fazer com alguém capaz de destruir qualquer tentativa de afeto. Tori tenta alcançar o filho até o último instante, movida por uma esperança que beira a teimosia. Ela conhece o olhar dele desde bebê, mas já não reconhece a criatura à sua frente.
A provocação mais interessante está no modo como o filme desmonta a expectativa ocidental de que poder é sinônimo de responsabilidade. Brandon rejeita a lógica do herói desde o primeiro lampejo de superioridade. Não enfrenta dilemas morais, não busca redenção. A narrativa aposta nessa recusa deliberada de humanidade e levanta uma pergunta desconfortável: e se a fragilidade humana não for um defeito, mas o único mecanismo que nos impede de cruzar a linha irrevogável? A produção não responde; prefere deixar que o desconforto se instale.
O fechamento não oferece consolo, e isso funciona a favor da proposta. Ao redor dos escombros deixados por Brandon, permanece a sensação de que a mitologia do salvador pode ser facilmente subvertida quando se retira qualquer traço de empatia. É justamente essa inversão que torna “Brightburn: Filho das Trevas” tão provocador. A história funciona como um lembrete de que nem toda figura extraordinária está destinada ao heroísmo. E talvez a inquietação deixada pelo filme seja o que o mantém tão vivo: a ideia de que o perigo mais devastador pode crescer dentro da própria casa, sorrindo numa foto de família.
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