O impacto de “Romeu + Julieta“ sempre me pareceu nascer de uma contradição deliciosa: a adaptação que veste Shakespeare com brilhos noventistas sem nunca abandonar a pulsação trágica que move Romeo, interpretado por Leonardo DiCaprio, e Julieta, vivida por Claire Danes. A escolha de transplantar a disputa entre Montagues e Capuletos para uma Verona Beach tingida de neon não funciona como simples modernização ilustrada; funciona como uma espécie de laboratório emocional onde cada personagem se move com a pressa ansiosa de quem ainda não sabe distinguir intensidade de consistência. E talvez seja exatamente esse excesso juvenil que torna o filme tão hipnótico quanto errático, como se Baz Luhrmann tivesse decidido friccionar poesia renascentista com videoclipes exibidos em velocidade quatro sem nunca pedir licença ao bom senso.
A entrada dos Montague boys em camisas floridas rasgadas pelo vento, encarando Tybalt, interpretado por John Leguizamo, em pleno posto de gasolina, não é apenas um convite ao caos: é a declaração estética de um mundo que abandonou a lógica e abraçou o exagero como língua materna. O duelo inicial, regado a cortes rápidos, sons inflados e armas batizadas com nomes de lâminas, funciona quase como um curtocircuito visual que introduz a disputa familiar sem esforço de sutileza. Luhrmann não tenta suavizar a imaturidade desses jovens; ele a amplifica até transformá-la em atmosfera. E quando Mercutio, vivido com brilho quase incendiário por Harold Perrineau, surge para arrastar Romeo para a festa dos Capuletos, o filme mergulha na vertigem das luzes, da música e dos desejos que dispensam tradução.
A festa é o momento em que a estética tem permissão para se desdobrar até o limite. Mercutio oferece a Romeo uma pílula que desencadeia um transe visual, preparando o terreno para o encontro entre o garoto apaixonado e Julieta, que surge do outro lado de um aquário como se emergisse de um sonho aquático de pureza improvável naquele cenário saturado. O encontro dos dois funciona como um corte radical no ritmo do filme: a câmera desacelera, os ruídos se dissolvem e a energia descontrolada se condensa em silêncio tenso. Romeo e Julieta descobrem a própria urgência ali, e o filme começa a ceder espaço para a tragédia que se aproxima. O casamento apressado, realizado com a cumplicidade do Padre Laurence, vivido por Pete Postlethwaite, marca o instante em que o encanto juvenil se choca com o peso de decisões adultas feitas por quem ainda não compreende a gravidade do mundo.
A partir da morte de Mercutio e do confronto entre Romeo e Tybalt, a narrativa treme. A comédia frenética se converte em tristeza inevitável. A expulsão de Romeo de Verona Beach dilacera o frágil elo recém-formado entre os amantes. Julieta tenta resistir ao arranjo imposto por seus pais, e a figura autoritária de Paul Sorvino como Capuleto revela a violência silenciosa que sustentava aquela família desde o início. O plano do Padre Laurence para unir os amantes por vias tortuosas depende de uma mensagem que nunca chega ao destino, e a sequência final no mausoléu transforma o descompasso dos tempos em sentença irreversível.
A estranheza de “Romeu + Julieta“ nasce justamente desse atrito: um texto que carrega séculos de ritmo e cadência poética encaixado em uma estética que pulsa como uma rave em fim de festa. O filme não tenta resolver essa dissonância; ele a eleva à condição de motor dramático. O espectador acompanha Romeo e Julieta não pela coerência da trama, mas pela intensidade de sentimentos que teimam em ultrapassar a racionalidade. E talvez seja essa a grande virtude da adaptação: entender que Shakespeare falava às emoções mais impacientes do público de sua época. Luhrmann, ao abraçar esse nervo exposto, reacende aquilo que sempre tornou a história tão persistente. A tragédia não se dilui na estilização; ela encontra nela um novo tipo de fôlego, tão exagerado quanto os próprios amantes que tenta retratar.
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