Em “Furiosa: Uma Saga Mad Max”, uma menina é sequestrada do chamado Lugar Verde de Muitas Mães por uma gangue de motoqueiros liderada pelo senhor da guerra Dementus, figura ruidosa que arrasta consigo uma caravana de refugiados armados. Levada à força para o deserto, essa criança, interpretada por Alyla Browne e mais tarde por Anya Taylor-Joy, atravessa sucessivas trocas de domínio entre facções que disputam água, gasolina e munição. A jornada conduz à Cidadela e às fortalezas industriais vizinhas, onde o conflito entre Dementus e Immortan Joe define cada rota de comboios, cada ataque e cada trégua provisória. Dirigido por George Miller, o longa apresenta ainda Chris Hemsworth como Dementus e Tom Burke como o motorista de elite Praetorian Jack, figuras que cercam o crescimento de Furiosa em meio a esse tabuleiro de guerra.
O filme é o quinto da franquia “Mad Max” e atua como prequela de “Mad Max: Estrada da Fúria”, deslocando o centro dramático da figura errante de Max para a trajetória de Furiosa. Em vez de acompanhar um forasteiro que chega a um conflito já em andamento, a narrativa acompanha anos de formação dessa personagem, desde o sequestro até o momento em que ela se torna peça-chave na Cidadela. A passagem do tempo se marca por capítulos que recortam fases de aprendizagem, disfarces, tentativas de fuga e avanços graduais na hierarquia das estradas, sempre com a memória do Lugar Verde de Muitas Mães como motor silencioso de cada decisão.
O ritmo segue o gênero de ação, mas se apoia em etapas bem delimitadas. Cada capítulo envolve um objetivo concreto, como proteger um comboio específico, defender um gargalo do deserto ou negociar vantagem entre cidades rivais. A câmera acompanha os movimentos dos veículos com atenção ao espaço: quando caminhões são cercados por motos, o espectador vê quem avança, quem recua, de que lado chegam reforços e onde uma brecha se abre. Essa clareza espacial sustenta a tensão de perseguições longas, nas quais um único erro altera a posição de um grupo inteiro na disputa por sobrevivência.
Visualmente, “Furiosa: Uma Saga Mad Max” retoma o contraste entre céu queimado, areia alaranjada e ferro corroído. A fotografia acentua a sensação de calor permanente, com horizontes deformados pela luz e cortes rápidos para interiores escuros cheios de tubulações, correntes e motores improvisados. O desenho de produção investe em veículos que parecem montados com restos de carros, aviões e máquinas agrícolas, cada um com função definida nas batalhas. Há carros leves para flanquear, caminhões blindados para segurar fogo pesado e plataformas móveis para abordagens em velocidade. Em muitas cenas, a ação se apoia em acrobacias físicas e explosões reais, com uso de efeitos digitais para complementar quedas de veículos e multidões ao fundo.
A comparação com “Mad Max: Estrada da Fúria” se impõe, mesmo que o novo longa siga outro percurso. Lá, a narrativa concentrava quase tudo em uma perseguição contínua. Aqui, a história se espalha por diferentes campanhas, cercos e negociações, o que dá ao filme ares de faroeste em ruínas. A Wasteland se comporta como território de fronteira, com códigos brutais para deserção, captura e troca de prisioneiros. Miller explora esse cenário com planos abertos de caravanas cruzando o deserto, seguidos por momentos mais secos em que líderes discutem regras de troca de recursos e prazos de guerra.
No trabalho de elenco, Anya Taylor-Joy assume uma personagem que fala pouco e observa muito. O rosto fechado, o olhar que mede distâncias e saídas de emergência, a postura corporal que se adapta ao ambiente hostil comunicam tanto quanto os diálogos. Quando adulta, Furiosa calcula cada aproximação, seja com Praetorian Jack, seja com subordinados de Immortan Joe, e a atuação reforça esse controle de impulso. Chris Hemsworth, por sua vez, investe em um Dementus espalhafatoso, que mistura piadas, frases de efeito e discursos para manter a adesão de seus seguidores. A composição do vilão explora o contraste entre figura cômica e capacidade real de crueldade, elemento central para entender por que tanta gente ainda se agrupa em torno de suas promessas.
Tom Burke aparece como motorista veterano que domina as rotas, as velocidades seguras e os riscos de cada manobra. A relação com Furiosa não se resolve em romance ou mentorismo explícito, mas em troca prática de habilidades: ele compartilha estratégias de escolta, ela observa onde a disciplina falha e onde é possível esconder planos próprios. Essa abordagem mantém foco nas ações e reduz sentimentalismo, coerente com um mundo em que cada parada pode terminar em emboscada.
A trilha sonora de Junkie XL reforça a natureza militarizada das sequências de estrada, com batidas que acompanham acelerações, mudanças de marcha e disparos. Em alguns momentos, o som se recolhe para destacar motores, assobios de vento e rangido de metal sob tensão. Essa alternância ajuda a marcar pausas antes de ataques mais pesados e confere a cada emboscada um desenho sonoro identificável. O espectador percebe quando um comboio começa bem equipado, quando enfrenta falta de munição e quando depende só da habilidade de motoristas para escapar de cercos.
Tematicamente, “Furiosa: Uma Saga Mad Max” trata da perda precoce de qualquer ideia de infância e da transformação de pessoas em recursos de guerra. O corpo de Furiosa passa por tentativas de marcação, aprisionamento e aproveitamento como ferramenta de transporte, vigilância ou reprodução, o que espelha o destino de outras mulheres na Cidadela. A diferença está na recusa silenciosa da personagem em aceitar esses papéis, recusa que se manifesta na forma como ela analisa o funcionamento de cada setor do regime e identifica onde cortar rotas, sabotando a máquina de dominação aos poucos.
Ao longo da duração estendida, o filme em alguns momentos repete dinâmicas de captura e fuga, com pequenas variações de cenário. A insistência em mostrar vários ciclos de ascensão e queda de Dementus pode cansar parte do público que espera apenas uma sequência direta de set pieces inéditas. Esse acúmulo reforça a ideia de que o deserto funciona por esgotamento de recursos e de paciência. Também evidencia que líderes carismáticos tendem a ser reciclados pelo sistema de violência que dizem comandar. Cada derrota parcial deixa uma cicatriz em Furiosa e move a personagem para uma posição nova dentro da hierarquia de combate.
Ao investir tempo na origem de sua guerreira, George Miller amplia a percepção sobre o que está em jogo quando “Mad Max: Estrada da Fúria” começa. O espectador passa a conhecer a história por trás da cabeça raspada, do braço mecânico e da segurança com que Furiosa entra em batalha ao lado de Max. “Furiosa: Uma Saga Mad Max” funciona assim como relato de aprendizado em logística de guerra, de leitura de terreno e de uso estratégico do silêncio em um mundo regido por gritos e motores. A dúvida sobre quem controla a próxima rota de comboio mantém esse deserto em estado constante de alerta.
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