“Okja”, para quem se dispõe a encarar suas contradições com alguma honestidade, funciona como aquele espelho incômodo que insiste em devolver um reflexo mais nítido do que gostaríamos. A história parece simples o bastante para caber numa conversa distraída, mas rapidamente se transforma num pequeno terremoto moral. Tudo começa com Mija, interpretada por Ahn Seo-hyun, vivendo com seu avô numa área montanhosa da Coreia do Sul, em meio a uma rotina ordenada pela relação quase simbiótica com Okja, o superporco que lhe foi entregue anos antes pela corporação de Lucy Mirando, vivida por Tilda Swinton. Só que a aparente tranquilidade do vilarejo funciona mais como um intervalo histórico do que como um estado duradouro. Quando a empresa decide recolher os animais para transformá-los no novo ícone global de alimentação barata, o laço entre a garota e sua companheira deixa de ser idílico e se torna um litígio político.
Essa transição de um cotidiano bucólico para uma corrida desesperada contrasta com o espetáculo de artificialidade que envolve Johnny Wilcox, interpretado por Jake Gyllenhaal, figura de entretenimento científico cujo comportamento errático é quase uma paródia involuntária do tipo de celebridade que mistura ciência, espetáculo e autopromoção. A chegada dele ao vilarejo funciona como um lembrete de que a lógica corporativa raramente aceita recusas: o que parece consulta é, na verdade, notificação. A partir daí, Mija se lança numa perseguição que rompe fronteiras, atravessa Seul e desemboca em Nova York, enquanto a corporação usa a imagem de Okja como vitrine de benevolência pública, ocultando a cadeia de exploração à qual pretende submetê-la.
A tentativa de resgate não envolve apenas a obstinação adolescente de Mija. Surge, pelo caminho, o grupo de ativistas liderado pelo personagem de Paul Dano, organização que enxerga no animal uma prova viva das manipulações industriais e um possível estopim para questionamentos globais. Só que a convivência entre eles revela outra camada do filme: boas intenções não compensam métodos confusos. Muitas das decisões estratégicas do grupo acabam criando mais ruído do que avanço, e Mija precisa lidar tanto com o pragmatismo frio da corporação quanto com a idealização desajeitada dos ativistas. Embora cada facção se anuncie como defensora de Okja, seus objetivos raramente coincidem com os desejos da garota, que quer apenas o retorno daquilo que sempre viu como família.
O percurso de Okja pelas engrenagens da Mirando expõe a coreografia de discursos publicitários, operações de contenção e tentativas de humanização de um processo que, no fundo, só se justifica pela lógica de lucro. O contraste entre a vulnerabilidade do animal e o espetáculo industrial que o cerca ressalta a brutalidade da cadeia de produção, algo que Mija percebe de maneira progressiva. É esse processo de tomada de consciência que dá densidade ao longa: acompanhar a garota não é apenas observar uma busca pessoal, mas testemunhar alguém entender como sistemas inteiros se constroem a partir de escolhas que não passam pelo consentimento dos indivíduos afetados.
Mesmo quando o filme adota um humor absurdo, a sensação de desconforto permanece, e não porque o enredo force sofrimento, mas porque cada gesto aparentemente inocente carrega implicações éticas que se acumulam como pequenas rachaduras. “Okja” alterna momentos de delicadeza e brutalidade sem se desculpar, e essa fricção constante cria um terreno fértil para reflexões sobre consumo, responsabilidade e as ficções corporativas que moldam a vida contemporânea.
O que realmente fica, após acompanhar Mija, não é uma lição redonda nem uma convocação moralista, e sim a estranha claridade de perceber que escolhas cotidianas sustentam sistemas que preferimos imaginar distantes. Talvez essa nitidez incômoda seja o maior feito do filme: ele não exige adesões, apenas recusa a mentira confortável de que tudo se resolve longe de nós.
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