A guerra sempre foi terreno fértil para distorções, e “Guerra Sem Regras” não foge dessa tradição ao reinterpretar a missão de Gus March-Phillips, vivido por Henry Cavill, com um entusiasmo que ignora qualquer compromisso com a plausibilidade histórica. O filme adota o espírito de um manual de ação acelerado, em que cada sequência parece criada para agradar a um público ansioso por velocidade e impacto imediato. A narrativa deixa claro desde cedo que a reconstrução do episódio conhecido como Operação Postmaster serviu mais como desculpa do que como fundamento. Essa escolha já determina a rota: a trama prefere tensionar a dúvida entre o espetáculo ruidoso e a tentativa de evocação histórica, mas termina presa a um meio-termo que dilui as duas frentes.
O eixo dramático acompanha Gus, Anders Larssen (Alan Ritchson) e Geoffrey Appleyard (Alex Pettyfer) na condução de uma missão que, no registro dos fatos, foi executada com precisão e discrição. No filme, porém, o percurso é reinventado como uma incursão quase mitológica, repleta de acrobacias e diálogos que soam artificiais mesmo no contexto ficcional. A participação de Ian Fleming, interpretado por Freddie Fox, reforça a sensação de artifício: em vez de aprofundar o papel do oficial na estrutura da operação, a narrativa o transforma em uma espécie de mascote histórico, encaixado para satisfazer espectadores familiarizados com o universo de espionagem que ele criaria anos depois. O resultado é um personagem reduzido a um comentário lateral.
A figura de Winston Churchill interpretada por Rory Kinnear agrava o desconforto. A caracterização aproxima o estadista de uma caricatura involuntária, fruto de escolhas estéticas que tentam simular presença e autoridade à força. Não há, em momento algum, a densidade que o papel exigiria para sustentar o peso simbólico da decisão política que autoriza a missão. Essa fragilidade compromete a estrutura dramática, pois elimina o contraponto entre ação em campo e estratégia institucional, algo essencial para que narrativas militares superem a superficialidade.
As divergências entre o registro histórico e o filme não constituem problema por si mesmas; a ficção nunca esteve obrigada a fidelidade absoluta. O impasse surge quando a liberdade criativa não é acompanhada por um propósito claro. Em “Guerra Sem Regras”, a distorção se converte em ruído. O enredo tenta ampliar a relevância da operação ao sugerir que a destruição da embarcação italiana responsável pelo fornecimento de filtros para submarinos alemães teria alterado o curso do conflito. A narrativa ainda insinua que a missão teria servido para influenciar a participação dos Estados Unidos na guerra, ignorando que o ataque a Pearl Harbor já havia determinado esse movimento. Essas escolhas retiram consistência do conjunto e aproximam o filme de um exercício especulativo que não assume essa vocação.
As cenas de ação se destacam pelo ritmo, mas pouco dialogam com a trajetória dos personagens. Gus, Anders e Geoffrey são retratados como heróis moldados por convenções contemporâneas, distantes das contradições e vulnerabilidades que tornariam suas figuras mais interessantes. A violência exagerada, somada ao tom jocoso que permeia alguns intercâmbios, cria um descompasso com a gravidade do contexto histórico. Esse material poderia ter rendido uma reflexão sobre estratégias não convencionais de guerra, sobre os limites morais da sabotagem ou mesmo sobre a formação do Special Operations Executive, mas o filme evita qualquer abordagem que exija densidade.
Ainda assim, o longa mantém uma energia constante sustentada por ambientações eficientes e por um elenco visivelmente confortável na estilização proposta. As locações, muitas delas filmadas em Antalya, funcionam como cenário convincente para a ficção, mesmo quando a dramaturgia se afasta de qualquer ancoragem factual. Esse contraste entre construção visual sólida e desenvolvimento narrativo fragmentado acentua a sensação de potencial desperdiçado. Em vez de explorar a dimensão singular da Operação Postmaster, o roteiro opta por uma ampliação artificial dos feitos, transformando um episódio discreto e engenhoso em uma fantasia de carnificina.
“Guerra Sem Regras” acaba se firmando como um filme que entretém em função do dinamismo, mas que não sustenta a pretensão de dar forma a um momento decisivo do conflito. Ele se apoia no carisma do elenco e em cenas eficientes, porém evita qualquer risco que pudesse conferir complexidade ao relato. Em meio a tanto estrépito, o que permanece é a impressão de que a história real, com sua engenhosidade silenciosa, teria oferecido uma narrativa muito mais instigante do que a hiperestimulação que o filme escolheu conduzir. A força do episódio histórico se dilui, e o que resta é uma ficção que não assume totalmente o que pretende ser, nem alcança o que parece desejar.
★★★★★★★★★★


