Sob o sol impiedoso daquele universo onde nada floresce além da brutalidade, é curioso perceber como “Furiosa: Uma Saga Mad Max” funciona quase como uma arqueologia afetiva do próprio caos. O filme se oferece como uma espécie de rito de iniciação, um convite ao espectador para atravessar uma paisagem que dispensa sentimentalismos, mas ainda assim insiste em testar a fibra moral de quem escolhe sobreviver. É nesse terreno de poeira e combustão que a narrativa encontra sua força, não por reproduzir o frenesi conhecido, mas por explorar o que acontece quando a violência perde a pressa e o desespero ganha forma de biografia. A partir daí, a sensação é de acompanhar um gesto gigantesco, mas deliberadamente irregular, como se cada episódio da trajetória da protagonista buscasse revelar o quanto a resistência exige mais do que músculos e motores: exige convicção.
A longa jornada de Furiosa (Anya Taylor-Joy) funciona quase como um compêndio de escolhas forjadas pela privação. Em vez de lançar a heroína em um fluxo contínuo de perseguições, o filme estende o tempo, permitindo observar a formação do olhar de alguém que compreende que esperança não é virtude, é estratégia. Essa dilatação narrativa tem algo de provocador, especialmente para quem espera apenas o torvelinho mecânico que consagrou outras histórias do mesmo universo. Aqui, tudo pulsa de maneira diferente, mais atenta aos pequenos desvios, ao modo como cada figura grotesca contribui para um cenário onde lealdade e ambição se confundem. Há, inclusive, um prazer quase infantil na maneira como a trama exibe sua fauna de tiranos, oportunistas e fanáticos, como se todos desfilassem numa tentativa desesperada de justificar por que ainda acreditam ser donos de qualquer coisa.
Dementus (Chris Hemsworth), o antagonista, surge com uma energia que beira o delírio, abraçando sua própria decadência com a convicção de quem sempre achou graça em expandir o caos. Ele não é apenas um obstáculo; é a metáfora viva de uma civilização que se autodevorou e agora se orgulha das sobras. A presença dele ilumina a protagonista por contraste, destacando o quanto sua brutalidade não se confunde com perda de horizonte. Ela age movida por algo mais profundo, um instinto de permanência que não parece se abalar mesmo quando o mundo insiste em ensinar que ninguém realmente vence ali, apenas adia o colapso. Essa relação de espelhos distorcidos dá ao filme instantes de intensidade inesperada, especialmente quando a narrativa se permite observar silêncios, hesitações e até mesmo pequenas faíscas de humanidade.
A construção desse universo continua impressionante na variedade de engenhocas, territórios e códigos de convivência improvisados. A cada novo cenário, fica claro que a sobrevivência virou uma espécie de arte artesanal, dependendo mais da engenhosidade do que de qualquer resquício de ordem. O filme mergulha nesses detalhes com evidente entusiasmo, ainda que, em alguns trechos, o excesso de computação gráfica se torne visível o bastante para romper a ilusão por um instante. Mas isso não compromete o conjunto, que preserva momentos de ação intensos e suficientemente inventivos para fazer jus à reputação dessa saga.
Os duelos mecânicos continuam vibrantes, ainda que menos impulsivos do que se espera. A narrativa prefere episódios estruturados, quase capítulos, o que reduz parte da vertigem típica, mas amplia a dimensão emocional do percurso. O resultado é um filme que não tenta competir com seu antecessor e talvez seja justamente essa escolha que o fortalece. O som, mais contido, acompanha essa mudança de registro, evitando composições grandiosas e confiando mais na pulsação interna das cenas. Essa contenção funciona como uma espécie de contraponto às imagens de devastação, permitindo que a jornada tenha um ritmo mais contemplativo sem perder sua carga de tensão.
Fica a sensação de que “Furiosa: Uma Saga Mad Max” pertence a uma linhagem rara de prequelas que se recusam a explicar demais. Ela amplia o universo sem sufocá-lo, oferece respostas pontuais e provoca perguntas ainda maiores. Não busca ser um espelho de sua predecessora, tampouco tenta disputar terreno com ela. Prefere caminhar por outra estrada, mais sinuosa e menos previsível, onde cada fragmento da história funciona como uma peça de um enigma maior. É justamente esse gesto de independência que torna a experiência tão envolvente, como se o filme nos lembrasse que, mesmo em mundos devastados, sempre existe espaço para reinvenção. A trama não procura reconfortar; convida o espectador a caminhar pela areia quente, sabendo que o horizonte não promete alívio, apenas a continuidade da luta.
★★★★★★★★★★

