Acaba de chegar à Netflix uma pequena pérola do cinema: estranhamente fofo, sombrio e bonito Divulgação / Art et essai

Acaba de chegar à Netflix uma pequena pérola do cinema: estranhamente fofo, sombrio e bonito

Sasha é uma adolescente vampira incapaz de matar. Mora com os pais em uma casa comum, frequenta a escola e se alimenta de bolsas de sangue guardadas na geladeira. O controle rígido do estoque funciona enquanto os adultos mantêm a rotina, mas a escassez empurra a garota para uma situação que ela sempre evitou: caçar. A necessidade física transforma a hesitação em problema doméstico. Do outro lado da cidade, Paul, rapaz isolado e alvo de agressões na escola, tenta organizar a própria morte como resposta ao desgaste cotidiano. When a busca de Sasha por um alvo se cruza com a vontade de desaparecer de Paul, nasce o pacto que sustenta a narrativa.

“Vampira Humanista Procura Suicida Voluntário”, dirigido por Ariane Louis-Seize, apresenta a dupla em tom que combina humor seco e fantasia contida. Sasha ganha corpo e olhar inseguro com Sara Montpetit; Paul, interpretado por Félix-Antoine Bénard, alterna ironia e exaustão. Steve Laplante e Sophie Cadieux vivem os pais vampiros que tratam a fome como questão de organização, enquanto Noémie O’Farrell interpreta Denise, prima eficiente na caça, sempre pronta a comentar os dilemas de Sasha com frieza pragmática. Esses personagens formam o ambiente que molda os movimentos da protagonista.

A falta de sangue dentro de casa desencadeia as primeiras ações da trama. A pressão familiar para que Sasha aprenda a matar reacende memórias de infância, quando um palhaço contratado para sua festa virou vítima inesperada após um descuido coletivo. A lembrança invade sua percepção sempre que a chance de atacar surge diante dela. A relação entre crescimento e medo se torna o eixo emocional do filme, que apresenta a fantasia vampírica a partir de conflitos terrenhos: culpa, vergonha e dificuldade de assumir responsabilidades impostas pela idade.

Paul funciona como contraponto humano para essa crise. As humilhações que ele sofre não aparecem como exceção, mas como rotina que desgasta qualquer tentativa de permanecer. O desejo de morrer é resultado de situações pequenas, repetidas, que se somam até se tornarem insuportáveis. Ao aceitar o pacto com Sasha, ele tenta recuperar controle sobre um corpo que a escola e os colegas tratam como alvo fácil. A negociação entre os dois envolve limites, prazos e tarefas, sempre discutidos em conversas diretas, sem metáforas grandiosas. Cada encontro produz uma espécie de trégua entre a fome dela e o desespero dele.

Louis-Seize trabalha ambientes modestos. Quartos apertados, corredores de escola, ruas vazias e salas de grupo de apoio dominam a composição dos quadros. Nada remete ao gótico tradicional. A câmera registra espaços que poderiam pertencer a qualquer cidade média, reforçando a sensação de vida suspensa. Os encontros entre os adolescentes ocorrem frequentemente à noite, sob iluminação fraca que acentua a cautela com que ambos se aproximam. Os diálogos caminham em tom baixo, pontuados por pausas longas, nos quais cada palavra parece exigir esforço.

Montpetit interpreta Sasha com postura retraída, ombros encolhidos e passos curtos. A sensação de atraso constante no tempo das interações sustenta a dificuldade da personagem em lidar com a própria natureza. Bénard oferece a Paul um humor que mascara cansaço, mas não o anula. Os olhos dele permanecem atentos às reações de Sasha, e isso cria um tipo de solidariedade silenciosa. Quando dividem o quadro, a distância física que se mantém entre os corpos expõe o receio de qualquer gesto mais direto.

O humor nasce do contraste entre a busca de Sasha por ética e a naturalidade com que a família lida com violência. Denise comenta técnicas de ataque como se discutisse tarefas domésticas. Os pais tratam a falta de sangue como falha de planejamento. A protagonista insiste em considerar o impacto sobre quem morreria por suas mãos. Essa diferença provoca situações desconfortáveis e risos breves, deslocados, que ajudam o público a acompanhar a tensão emocional das cenas mais pesadas sem recorrer a alívios artificiais.

A fotografia aposta em sombras discretas, que acompanham o estado emocional dos personagens. A predominância de interiores reforça a sensação de confinamento. Ruídos cotidianos de portas, passos e trânsito distante formam o pano de fundo sonoro, enquanto a trilha musical aparece em momentos curtos, sempre subordinada ao comportamento dos personagens. A montagem mantém cadência uniforme, com cortes que permitem observar reações completas e preservam o silêncio como parte essencial do drama.

O último terço reúne decisões mais diretas, mas a narrativa evita transformações abruptas. O pacto entre Sasha e Paul segue presente como marca de tudo que viveram em poucas noites. A diretora preserva ambiguidades sobre o futuro dos dois, recusando soluções mágicas para depressão ou para a fome vampírica. O que se vê é uma mudança gradual na relação deles com o próprio corpo e com o outro, construída em conversas íntimas, caminhadas tardias e tentativas de explicar o que dói. Acompanhá-los significa observar como, em meio a bolsas de sangue na geladeira e confissões difíceis, uma decisão que parecia inevitável começa a perder peso à medida que eles encontram brechas de escuta nas noites que compartilham.

Filme: Vampira Humanista Procura Suicida Voluntário
Diretor: Ariane Louis-Seize
Ano: 2023
Gênero: Comédia/Drama/Fantasia/horror
Avaliação: 9/10 1 1
★★★★★★★★★