É curioso como certos filmes encontram terreno fértil justamente onde a realidade insiste em criar ruídos incômodos. “27 Noites” se enquadra nesse tipo em que a ficção não funciona como fuga, mas como uma lente que amplia cada detalhe incômodo das relações humanas. Não porque queira oferecer lições de moral ou bandeiras agitadas, mas porque entende que a velhice continua sendo um dos últimos tabus sociais que insistimos em tratar com paternalismo disfarçado de preocupação. Logo nos primeiros minutos, a história deixa claro que Martha Hoffman, aos oitenta e tantos anos, não precisa de tutela; precisa apenas que o mundo aceite o que ela sempre foi: uma mulher que fez da vida um território próprio. Sua rotina é marcada por escolhas que incomodam quem prefere uma velhice domesticada e silenciosa. E talvez seja justamente por isso que o filme funciona tão bem, ao revelar o quanto a liberdade alheia costuma incomodar mais do que qualquer suposta fragilidade.
A reação das filhas, que tentam interditar a mãe sob a justificativa médica mais conveniente, revela não apenas medo de perda de patrimônio, mas a velha e conhecida ânsia de controlar aquilo que escapa à lógica burguesa da contenção. Para elas, Martha se tornou perigosa porque continua dizendo sim ao prazer, às pessoas, ao dinheiro circulando de forma que não respeita planilhas de herança. A internação compulsória, articulada com a naturalidade fria de quem se convenceu de que a razão está do seu lado, expõe a grande contradição: a tentativa de proteger alguém contra si mesmo muitas vezes esconde apenas o desconforto diante de uma vida vivida com intensidade. É nesse ponto que “27 Noites” encontra sua força. Ele não acusa, não absolve, apenas deixa o espectador observando a crueldade que se manifesta quando os afetos se transformam em mecanismos de controle.
A chegada de Casares, o perito encarregado de decidir se Martha está apta ou não a conduzir a própria vida, inaugura o centro gravitacional do filme. Ele representa o tipo de sujeito que a burocracia estatal costuma produzir: alguém que confunde neutralidade com anestesia emocional. Suas conversas com Martha revelam uma tensão que não se resolve em nenhum dos lados. Ele tenta seguir um script clínico que ela insiste em desmontar com franqueza desconcertante, às vezes com humor, às vezes com um pequeno golpe de sensibilidade que atravessa o silêncio dele. A dinâmica entre os dois funciona como um estudo sobre o choque entre quem ainda deseja o mundo com todas as suas possibilidades e quem, por cansaço ou medo, desistiu de interagir com ele.
Essa troca se torna ainda mais interessante quando o filme expõe a rede de artistas, amigos e agregados que orbitam Martha. Não por um olhar romântico ou compassivo, mas como demonstração de que sua vida é um espaço de criação contínua, onde relações são escolhidas e não impostas. Há algo profundamente político nos vínculos que ela mantém, não no sentido partidário, mas na forma como desafia a ideia de que envelhecer significa reduzir o campo de ação. As cenas com seus amigos boêmios, cheias de improviso e pequenas explosões de afetividade, funcionam como contraponto ao ambiente asséptico da instituição psiquiátrica. O filme sabe que esse contraste não é apenas estético; é uma disputa entre modos de existir.
Conforme a narrativa atravessa o período de internação e o retorno à casa, “27 Noites” insiste na pergunta que raramente fazemos com honestidade: quem decide qual velhice é aceitável. A resposta nunca aparece de maneira explícita, porque o filme entende que seria reduzi-lo a um panfleto. Em vez disso, oferece situações que obrigam o espectador a confrontar seus próprios preconceitos. A tentativa das filhas de fechar qualquer brecha por onde a mãe possa exercer autonomia se choca com a vitalidade que Martha demonstra mesmo nos momentos de fragilidade. E há algo profundamente subversivo no fato de ela não precisar justificar suas escolhas, apenas vivê-las.
A atuação de Marilú Marini torna tudo isso ainda mais contundente. Ela recusa o estereótipo da idosa sábia e doce, preferindo construir uma personagem que troca delicadeza por lucidez, e resignação por movimento. Não há nada gratuito em sua interpretação; cada gesto parece sugerir que o corpo, mesmo envelhecido, ainda é território de invenção. A câmera acompanha esses momentos com respeito, permitindo que o espectador perceba nuances que dispensam diálogos explicativos. É aí que o filme alcança seus instantes mais belos, quando a performance sustenta sozinha a camada emocional que a narrativa requer.
A transformação de Casares, ainda que sutil, oferece um eco interessante às escolhas de Martha. Seu reencontro com o desejo, com a possibilidade de se permitir algo fora do roteiro da vida burocrática, funciona como contraponto discreto à energia expansiva dela. Não se trata de redenção, nem de conversão moral, mas da percepção de que a proximidade com alguém que se recusa a desaparecer socialmente pode reativar partes esquecidas de si. Essa relação, construída com precisão e ritmo orgânico, evita atalhos dramáticos e dá à história uma densidade que impede leituras simplistas.
“27 Noites” avança então para seu fecho com a mesma coragem que exibe desde o início. A reconciliação possível não nasce da punição ou do arrependimento, mas do reconhecimento de que tentar apagar a vitalidade de alguém é sempre uma forma de violência. A história parte desse ponto para insinuar algo maior: talvez a velhice precise deixar de ser tratada como um terreno de contenção para se tornar novamente um território de escolhas. E quando esse pensamento se instala, o filme deixa uma sensação incômoda, quase libertadora, de que a verdadeira questão nunca foi a sanidade de Martha, mas o desconforto de quem não suporta vê-la viver exatamente como deseja.
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