“Frankenstein”, de Guillermo del Toro, é uma tentativa grandiosa de devolver ao mito fundacional da literatura moderna o peso que a sucessão de adaptações diluiu. O cineasta parte de Mary Shelley não apenas para reconstruir uma narrativa sobre vida e morte, mas para propor uma reflexão sobre a própria natureza da criação, seja ela científica, artística ou moral. Há algo de inevitavelmente ambicioso nesse gesto: o que Shelley concebeu como tragédia romântica e crítica à arrogância humana, Del Toro traduz em espetáculo visual e sentimental, onde cada imagem busca não só fascinar, mas convencer o espectador de que o horror ainda pode carregar dignidade.
A narrativa preserva o essencial do texto original: um homem que desafia os limites da natureza e cria algo que não pode controlar. No entanto, o diretor opta por uma leitura mais melancólica do que filosófica, privilegiando o pathos das figuras centrais em detrimento da abstração moral. Oscar Isaac, como o doutor obcecado, é menos Prometeu e mais penitente; seu olhar febril substitui a inquietação intelectual de Shelley por uma culpa visceral. Jacob Elordi, por sua vez, encarna a criatura com uma estranheza contida, evitando o sentimentalismo e devolvendo ao personagem a ambiguidade que tantas versões suprimiram: nem vítima pura, nem vilão absoluto. O encontro entre ambos, quando finalmente se dá, tem o peso de uma confissão tardia, mais humana do que metafísica.
O maior trunfo do filme é justamente o contraste entre a beleza de sua forma e a angústia que ela contém. Del Toro filma como se esculpisse em sombra e ouro, investindo em uma estética gótica que recusa o realismo, mas também não se perde na ornamentação. As ruínas, os laboratórios e os campos encharcados de neblina são menos cenário do que estado de espírito, expressão da ruína interior de seus personagens. O resultado é um universo que parece respirar decadência e desejo, como se o próprio mundo estivesse cansado de abrigar os delírios humanos. É nesse ponto que o cineasta se aproxima verdadeiramente de Shelley: quando transforma o mito em espelho do homem moderno, condenado a repetir sua hybris sob novas máscaras tecnológicas e morais.
Ainda assim, há uma tensão constante entre o lirismo e o excesso. A longa duração da narrativa dilui parte da potência simbólica, e algumas invenções, como o personagem de Christoph Waltz, criado para amarrar as motivações, soam artificiais. O filme ganha força quando se mantém fiel à estrutura epistolar e fragmentária do romance, permitindo que diferentes vozes disputem a verdade. Quando abandona esse jogo e se entrega à solenidade, perde um pouco da inquietação que o torna relevante. Del Toro é um diretor que ama o mito a ponto de temer desconstruí-lo, e talvez por isso “Frankenstein” oscile entre o monumento e a elegia.
Mas o que fica, depois do último plano, é a sensação de que o horror aqui não é estético, e sim moral. O que assusta não é o corpo costurado do monstro, mas a recusa de seu criador em reconhecê-lo como espelho. Shelley intuiu que o ser humano jamais suportaria a própria imagem deformada; Del Toro apenas confirma, em cores saturadas e iluminação de catedral, que continuamos fascinados por nossos fracassos. Há beleza na monstruosidade, mas há também uma advertência: toda criação que ignora a responsabilidade transforma o criador em criatura.
“Frankenstein” é menos um filme sobre a vida que desafia a morte do que sobre o homem que não suporta o que produz. Ao final, Del Toro não renova o mito; ele o devolve ao seu ponto de origem, onde a ciência se confunde com culpa e a arte com remorso. O monstro, enfim, caminha outra vez — e o que se reflete em seu olhar vazio é o próprio rosto do espectador.
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