“Miss Simpatia” é uma comédia de ação que se apoia em um conflito clássico: a transformação de uma mulher que precisa se moldar a um ambiente que despreza para cumprir uma missão profissional. O enredo é simples, mas eficiente. Uma agente do FBI é designada para se infiltrar em um concurso de beleza com o objetivo de evitar um atentado. A partir dessa premissa, o filme cria um jogo entre duas dimensões opostas, o mundo da inteligência policial e o universo da estética performática, e encontra seu charme justamente na colisão entre ambos.
O filme não tenta ser uma sátira profunda sobre o culto à beleza ou sobre os padrões femininos impostos pela sociedade, embora o tema esteja presente como pano de fundo. O que sustenta o interesse é a condução do contraste entre a rigidez da agente Gracie Hart e a leveza artificial das concorrentes que a cercam. A narrativa funciona porque nunca se leva a sério demais. A comédia nasce da observação dos gestos, dos desconfortos e das tentativas de adequação de uma mulher que, até então, só acreditava em eficiência, não em simpatia.
Sandra Bullock, além de protagonista, é também produtora e, nesse caso, arquiteta de sua própria imagem cômica. Sua atuação foge do estereótipo da “mulher desengonçada” apenas como artifício de humor. Há nela um senso de dignidade que impede que o personagem se reduza à caricatura. A transformação de Gracie, que começa como uma policial desleixada e termina desfilando em um palco iluminado, não é apenas física. O filme trabalha, ainda que de forma leve, a tensão entre autenticidade e adaptação social. É um tema antigo, e talvez por isso tão eficaz, porque toca na experiência cotidiana de quem precisa performar papéis para ser aceito.
Michael Caine, em papel secundário, dá ao filme uma elegância que o roteiro, em si, não ofereceria. Seu personagem, responsável por treinar Gracie nas artes da feminilidade, age como um catalisador de humor e ironia. Ele representa o olhar cínico, quase paternal, de quem entende que o mundo do glamour é, antes de tudo, um teatro bem ensaiado. Entre ele e Bullock se estabelece uma dinâmica de aprendizado mútuo, onde o riso não é gratuito, mas uma forma de reconhecer o ridículo do esforço humano por adequação.
“Miss Simpatia” se mantém interessante porque evita o moralismo. Não há um discurso explícito sobre feminismo, empoderamento ou crítica social. O filme apenas sugere, com leveza, que a inteligência e a vaidade não precisam ser forças excludentes. Essa escolha pode ser vista tanto como superficial quanto como pragmática. De um lado, o roteiro se esquiva de aprofundar as contradições do universo que retrata; de outro, compreende que o entretenimento também é uma forma legítima de refletir, ainda que de modo implícito, sobre o comportamento humano.
Há, é verdade, momentos em que a comédia escorrega para o exagero e se apoia em soluções fáceis. O terceiro ato, quando a investigação chega ao clímax, perde parte da espontaneidade que marcava o início. A narrativa policial se dissolve em uma série de gags previsíveis, e a tensão, que poderia dar corpo ao desfecho, se dilui em situações cômicas repetitivas. Ainda assim, o filme não perde o ritmo. O mérito está na coesão entre humor e ação, e na habilidade de Bullock em sustentar o equilíbrio entre desordem e charme.
Há um subtexto curioso que atravessa toda a trama: a ideia de que o disfarce, em si, pode revelar mais do que esconder. Gracie, ao se tornar outra para cumprir seu dever, descobre aspectos de si mesma que antes rejeitava. Esse jogo entre autenticidade e performance é o que dá alguma profundidade a uma história que, de outro modo, seria apenas uma comédia policial eficiente. O filme sugere que os papéis sociais, mesmo os mais artificiais, têm o poder de transformar o sujeito, não porque o moldam, mas porque o obrigam a refletir sobre quem realmente é.
Tecnicamente, “Miss Simpatia” não oferece inovações. A direção é funcional, o ritmo é convencional e a trilha sonora reforça o tom leve, quase televisivo, da narrativa. No entanto, há um mérito em reconhecer quando a simplicidade é bem conduzida. O filme sabe o que é e não pretende mais do que isso. Sua honestidade estética é o que o torna agradável, mesmo quando cede ao sentimentalismo ou à previsibilidade.
Visto à distância de duas décadas e meia, “Miss Simpatia” adquire um valor diferente do que teve em seu lançamento. Hoje, é possível perceber nele um retrato de transição: um tipo de comédia que ainda dependia de personagens femininas transformadas para afirmar sua força, mas que, paradoxalmente, abriu espaço para representações mais livres nos anos seguintes. A leveza do filme talvez seja sua forma de resistência, não contra o sistema que satiriza, mas contra o peso de uma indústria que sempre exigiu justificativas para o riso feminino.
“Miss Simpatia” é, portanto, um produto de seu tempo, mas com uma inteligência discreta. Não tenta ser revolucionário, mas acaba sendo revelador por acidente. É divertido, fluido e ciente de suas limitações. E talvez justamente por isso tenha permanecido na memória coletiva: porque entrega o que promete sem pedir licença para ser levado a sério.
★★★★★★★★★★


