A história começa no luto e no impulso de controlar o irreparável. Um jovem pesquisador concentra noites e recursos na tentativa de superar a morte, cercado por instrumentos elétricos, livros de anatomia e a pressão de provar domínio sobre aquilo que o assombra. O projeto toma forma em espaços fechados, com mesas, cabos e líquidos que conduzem energia, enquanto do lado de fora a desconfiança cresce e a vigilância encurta passos. O objetivo não é apenas descobrir um procedimento: é vencer um limite que o cerca por todos os lados.
Em “Frankenstein”, dirigido por Guillermo del Toro e estrelado por Oscar Isaac, Jacob Elordi, Mia Goth e Christoph Waltz, a trajetória do cientista expõe o atrito entre desejo e responsabilidade. A produção adapta o romance “Frankenstein; ou, O Prometeu Moderno”, de Mary Shelley, e atualiza a linha de força que liga criador e criatura sem esvaziar o conflito central. A ligação com o texto literário aparece no modo como a culpa se distribui entre quem idealiza a experiência e quem precisa aprender a viver com o resultado.
O enredo avança quando o laboratório passa a funcionar como refúgio e ameaça. O pesquisador coleta materiais, testa correntes e anota variações, até que o corpo montado reage ao estímulo elétrico. A figura que desperta observa, imita, aprende e, em seguida, enfrenta rejeição e medo. O cientista, tomado pela mistura de fascínio e pavor, recua. Em vez de firmar compromisso, posterga explicações, esconde evidências e aposta que o tempo apagará rastros. O comportamento contorna responsabilidades e aumenta o alcance do dano, porque cada recusa abre caminho para uma resposta mais dura do ser recém-formado.
Del Toro enquadra o conflito com clareza espacial. A câmera define eixos, preserva direções e dá a ver o caminho entre portas e escadas, o que permite acompanhar perseguições e fugas sem perda de referência. Quando há confronto, a montagem alterna planos médios e fechados para destacar o funcionamento dos gestos: a mão que falha, o peso que cria vantagem, a superfície que cede. O espectador entende quem avança, quem recua, quem tenta cercar e quem procura uma saída, sem apelar para cortes que confundam distância. Esse desenho reforça a causalidade: deslocamentos produzem riscos mensuráveis para cada envolvido.
O som trabalha com camadas de respiração, metal, água e eletricidade. Nas sequências de preparação, o silêncio reforça a concentração do cientista; quando a experiência entra em estágio decisivo, ruídos ganham corpo e marcam o pulso da operação. A música apoia a progressão dramática, recuando para que os sons do ambiente ocupem o primeiro plano quando uma escolha pede atenção. Esse equilíbrio desloca o foco do comentário para o efeito: o que se escuta sempre corresponde a uma ação, um material ou um obstáculo visível.
As atuações constroem um circuito de causa e efeito. Oscar Isaac modela um homem capaz de prometer correção e adiar a entrega de contas, alguém que hesita em assumir a própria obra quando a realidade cobra posição. Jacob Elordi compõe uma criatura que aprende em ritmo acelerado, associa dor a rosto e lugar e transforma frustração em tentativa de comunicação antes de escalar reações. Mia Goth acrescenta contraste, funcionando como ponto de empatia em ambientes onde cálculo e reputação predominam. Christoph Waltz encarna o financiador que mede resultados e impõe prazos, convertendo a ciência em investimento que deve retornar lucro e prestígio.
O desenho de produção sustenta a época sem vitrines limpas. Mesas manchadas, rolamentos gastos e livros usados indicam pesquisa feita sob peso de improviso e economia de meios. A casa de família expõe retratos e relógios que marcam ausência e cobrança; o laboratório acumula bobinas, frascos e cabos que deixam a energia visível; corredores úmidos, ruas estreitas e docas mal iluminadas comprimem movimentos e forçam escolhas rápidas. Quando a narrativa migra para regiões geladas, o branco dominante reduz contraste e denuncia a precariedade de abrigo, comida e combustível, convertendo cada passo em cálculo de sobrevivência.
O roteiro trabalha sem explicações redundantes. O conhecimento do mundo surge do uso de objetos, do registro de tentativas e da leitura dos efeitos sobre as pessoas. O cientista mede, compara e insiste; a criatura observa, memoriza e responde. Essa lógica expressa o tema central: criar um ser não encerra a tarefa, inaugura uma relação. A recusa em nomear, acolher e instruir produz sequelas visíveis em cartas destruídas, mesas vazias, portas trancadas e encontros interrompidos. Cada escolha reorganiza alianças e define quem protege, quem denuncia, quem pede passagem e quem bloqueia o caminho.
As sequências de perseguição mantêm legibilidade de trajetos. Mapas abertos sobre mesas, sinais trocados em portos e o registro de clima adverso deixam claro o que se arrisca a cada deslocamento. A câmera não quebra a orientação do espaço e permite acompanhar quem cobre retaguarda, quem tenta flanquear e quem assume a frente. Esse cuidado impede que a ação vire ruído e preserva o sentido de urgência sem sacrificar compreensão.
A direção ancora o terror em procedimentos de ameaça verificáveis: escuridão que reduz alcance de visão, portas que emperram, passos que se aproximam, luzes que falham, instrumentos que mantêm risco mesmo depois de desligados. Não há predomínio de sustos repentinos; há preparação, espera e descarga. O medo resulta de regras internas que o espectador aprende ao observar tentativas anteriores e as consequências de forçar limites técnicos e morais.
Com duração ampla, a narrativa reserva tempo para hesitações, recuos e pequenas negociações. As elipses evitam sobreexplicação e preservam a lógica dos fatos essenciais: quem financia define prazos, quem pesquisa busca atalho, quem acorda sem guia procura alguém que responda. A progressão mantém atenção na pergunta de fundo: o que se deve a quem foi trazido à vida sem escolha e sem linguagem? A obra recusa atalhos moralizantes e permite que a resposta apareça na prática de acolher, instruir, abandonar ou caçar.
Ao encerrar o ciclo, o filme reafirma a responsabilidade do criador diante do que construiu. Laboratório e casa já não sustentam a separação entre técnica e afeto; decisões científicas chegam à sala de jantar e à rua; o vento nos portos desloca planos, e o gelo denuncia a fragilidade de corpos e promessas. A fumaça que volta dos equipamentos quebrados indica que nada se desfaz sem deixar rastro, e os sobreviventes precisam calcular o que ainda podem manter de pé.
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