Edward Said deve estar se revirando no próprio túmulo com sátira ruim sobre colonialismo na Mubi Divulgação / Spacemaker Productions

Edward Said deve estar se revirando no próprio túmulo com sátira ruim sobre colonialismo na Mubi

Segundo longa-metragem de Amalia Ulman, “Magic Farm“ é uma pequena produção apoiada pela Mubi que simula a gravação de uma série documental sobre a cultura do clickbait. Uma equipe de mídia viaja até uma cidadezinha argentina em busca de um personagem que viralizou na internet, apenas para descobrir que está no país errado, e que várias cidades da América do Sul compartilham o mesmo nome. Para não voltar de mãos vazias, o grupo começa a recrutar moradores excêntricos para fabricar pequenas farsas e “salvar” seu programa.

Chloë Sevigny interpreta Edna, a apresentadora da série, uma figura que o roteiro praticamente abandona, subaproveitada, aparece pouco e diz ainda menos. Ulman encarna Elena, a produtora principal, acompanhada de dois assistentes: Justin (Joe Apollonio) e Jeff (Alex Wolff). Há também Dave (Simon Rex), marido de Edna e produtor-executivo, outro personagem desperdiçado. O ritmo do filme se apoia sobretudo no trio Elena, Justin e Jeff, todos igualmente atrapalhados. Apenas Elena consegue se comunicar com os locais, por causa de suas origens hispânicas, mas nem isso impede os mal-entendidos que alimentam a comédia.

Aos poucos, cada um cria seu arco próprio com moradores. Justin se envolve num flerte platônico com o recepcionista do hotel, um homem mais velho e solitário, enquanto Jeff se apaixona por Manchi (Camila Del Campo), adolescente que, junto da mãe, ajuda a equipe a encontrar personagens para o falso documentário. São relações que poderiam humanizar o enredo, mas acabam soterradas pelo olhar cômico e pela pressa da narrativa.

Tudo é visto por um ângulo satírico, mas a crítica à ignorância dos estrangeiros se embaralha com o mesmo preconceito que pretende denunciar. Os estereótipos sobre a América Latina: o caos, a pobreza, o exotismo, acabam reforçados, ainda que sob a máscara da ironia. O filme quer zombar do olhar estadunidense, mas, ao fazê-lo, parece zombar também de quem é filmado. O resultado é ambíguo: a sátira, em vez de desconstruir, repete.

“Magic Farm“ se aproxima do que Edward Said descreveu como o processo de ocidentalização: a operação de linguagem e de olhar que cria narrativas sobre o outro apenas para reafirmar a própria centralidade. O San Cristóbal que Ulman mostra não é um lugar real, e sim um palco inventado para caber na imaginação estrangeira. A equipe de jornalistas, sem se dar conta, fabrica uma versão ocidentalizada do “Sul Global”: colorida, desorganizada, mística e levemente perigosa. É uma colagem de clichês coloniais reciclada para a era do algoritmo.

Essa “missão civilizatória midiática” espelha o que Said chamou de discurso do poder benevolente: a crença de que o Ocidente se infiltra em outras culturas para educar, documentar ou salvar. Ulman transforma esse gesto num espetáculo de autopromoção: o repórter não quer descobrir nada, quer apenas encenar a descoberta. É o orientalismo como performance, mediado por câmeras portáteis e pela estética da internet.

Mas, ao tentar ironizar o próprio olhar colonial, Ulman acaba presa na armadilha que queria expor. Sua crítica depende de um público capaz de decifrar a ironia, e o filme, talvez, não confie o bastante nisso. “Magic Farm“ não funciona nem como comédia, porque sequer tem piadas suficientemente engraçadas, nem como sátira, porque reforça o erro que critica. A lente olho-de-peixe passeando por ruas de terra, animais soltos e vacas cruzando o quadro produz mais desconforto do que humor. A piada parece sempre ser sobre nós, não sobre eles.

Filme: Magic Farm
Diretor: Amalia Ulman
Ano: 2025
Gênero: Comédia/Drama
Avaliação: 6/10 1 1
★★★★★★★★★★
Fer Kalaoun

Fer Kalaoun é editora na Revista Bula e repórter especializada em jornalismo cultural, audiovisual e político desde 2014. Estudante de História no Instituto Federal de Goiás (IFG), traz uma perspectiva crítica e contextualizada aos seus textos. Já passou por grandes veículos de comunicação de Goiás, incluindo Rádio CBN, Jornal O Popular, Jornal Opção e Rádio Sagres, onde apresentou o quadro Cinemateca Sagres.