Trágico e bruto, o filme ganhador do Oscar que Denzel Washington considera sua melhor atuação está na Netflix Divulgação / Paramount Pictures

Trágico e bruto, o filme ganhador do Oscar que Denzel Washington considera sua melhor atuação está na Netflix

Em um bairro operário dos anos 1950, um catador de lixo luta por reconhecimento após uma juventude truncada e vê o filho disputar espaço dentro de casa e na cidade. “Um Limite Entre Nós” constrói esse embate a partir da rotina de Troy Maxson, homem orgulhoso que volta do trabalho, conversa no quintal, bebe com o melhor amigo e cobra de Cory disciplina e obediência. Denzel Washington dirige e interpreta o protagonista; Viola Davis vive Rose, esposa que sustenta a casa e mede o peso das exigências do marido. A obra adapta a peça “Fences”, de August Wilson, recuperando seus diálogos e sua ambientação doméstica sem esconder a origem teatral, agora explorada pela câmera com proximidade e respiros calculados.

O conflito central aparece cedo: o pai teme que o filho repita frustrações que ele associa ao racismo institucional e às chances negadas em sua juventude. Cory, por sua vez, deseja aproveitar uma oportunidade esportiva que pode abrir novas portas. Rose tenta arbitrar, lembrar acordos e manter as contas em dia. A casa, o quintal e a cerca em construção tornam-se marcos de território, proteção e controle. O roteiro, assinado a partir do texto de August Wilson, mantém os embates verbais como motores de mudança. Cada conversa desloca fronteiras afetivas e mostra que o poder de decisão de Troy se ancora tanto no cansaço do trabalho quanto em um orgulho ferido que não admite revisão.

A direção escolhe o quintal como palco principal, onde a presença de cadeiras, garrafas e a própria cerca materializa ritmos de aproximação e afastamento. Washington posiciona a câmera em alturas discretas, muitas vezes à altura do olhar, para registrar a pressão que cresce com frases interrompidas e pausas que expõem ressentimentos antigos. Quando o protagonista encara o filho, o enquadramento se fecha e o fundo some; quando o amigo Bono aparece, abre-se espaço e o tom relaxa até a próxima investida. A montagem respeita tempo de fala e silêncios, sem cortes acelerados, deixando que mudanças de humor se imponham pelo corpo e pela voz.

Viola Davis constrói Rose com gestos contidos e olhos sempre atentos às tarefas, da cozinha ao varal. A interpretação se concentra em ouvir, calcular o momento de intervir e, quando decide falar, estabelecer limites que ressoam pelos cômodos. Denzel Washington imprime em Troy um misto de bravata e fadiga; as histórias que ele repete sobre a juventude e a relação com o pai não servem apenas para se afirmar, mas para impor regras. Essas escolhas de atuação sustentam a lógica do lar: a autoridade masculina tenta cobrir qualquer fenda, e a resistência surge em olhares prolongados e frases que cortam o circuito da imposição.

O som destaca conversas, risos e discussões sem trilha que adoce a cena. O ruído do caminhão de lixo, a batida dos objetos no quintal e os diálogos em fluxo contínuo criam a sensação de vigília diária. A fotografia privilegia tons terrosos e interiores pouco iluminados, o que reforça a ideia de um ambiente apertado, com vida organizada em torno de tarefas e contas. Quando o céu abre, o quadro registra respiros, mas a cerca em construção volta a impor bordas. O desenho de produção coloca em evidência móveis gastos, ferramentas, uma mesa sempre pronta, um boné surrado; cada objeto indica prioridades e limitações financeiras.

A adaptação preserva longos blocos de fala e, ao mesmo tempo, busca o movimento que o cinema permite. A câmera acompanha deslocamentos pelo corredor, pela sala e pelo quintal, como se desenhasse o perímetro do poder de Troy. Essa insistência espacial fortalece a leitura do título: a cerca protege e aprisiona. A cada avanço de Cory para fora do que o pai considera seguro, o ambiente reage. A proximidade do portão vira sinal de chance e de risco. O ritmo do drama se mantém médio, com breves respirações para que os personagens recalcularem a rota antes de outra cobrança.

A relação entre trabalho e casa pesa nas decisões. Como funcionário de coleta, Troy cobra promoção e questiona a distribuição de funções. A luta por reconhecimento, contudo, não se traduz em abertura ao filho. O que vem de fora como conquista possível volta para dentro em forma de proibição. A narrativa explicita essa contradição quando o protagonista exige respeito enquanto nega, na prática, a possibilidade de o jovem escolher outro caminho. A direção contrasta essas posições colocando os personagens em planos diferentes do quintal, com o pai próximo à cerca e o filho encostado ao fundo, separado por cadeiras ou ferramentas.

Os coadjuvantes ampliam leituras sobre masculinidade, lealdade e memória. Bono observa, aconselha e tenta conter excessos, lembrando que promessas precisam de prova. Lyons, filho mais velho de Troy, músico, vive entre pequenos empréstimos e entusiasmo, abordando outra forma de buscar espaço. Gabriel, irmão do protagonista, carrega marcas da guerra e oferece um ponto de vista alheio às regras de produtividade e controle. Cada presença revela um aspecto do protagonista que ele tenta esconder: o medo de se ver ultrapassado pelos mais jovens, o ciúme de oportunidades que não teve e a necessidade de permanecer referência a qualquer custo.

Rose sustenta a espinha moral da casa. Sua fala afiada, em determinado momento, altera o eixo de autoridade e obriga Troy a ouvir. A cena não depende de música nem de truques de câmera; resolve-se na firmeza do olhar e na precisão das palavras. A interpretação de Viola Davis faz dessa virada um marco na dinâmica familiar, porque explicita o trabalho invisível que mantém a casa de pé. A partir daí, a convivência passa a depender de novos pactos. Os gestos mudam, e a montagem se permite pausas mais longas entre as falas, como se o ar ficasse mais pesado a cada tentativa de recomposição.

A peça de August Wilson dá ao filme uma base de diálogo que aposta na repetição com variação. Histórias voltam, expressões retornam, e o público aprende a ler sinais: uma garrafa esvaziada, uma ferramenta largada, o toque no ombro que antecede a ordem. A mise-en-scène se organiza para que esses sinais produzam efeito direto na relação entre pai e filho. Quando Cory hesita, a câmera o acompanha até o limite do pátio; quando avança, a cerca se insinua como fronteira de autoridade. Há coerência espacial nessa progressão, e a escolha de manter o drama concentrado em poucos ambientes faz cada deslocamento importar.

O tempo histórico importa, mas não vira aula. A segregação limita trajetórias e alimenta o rancor do protagonista. Ainda assim, a casa abriga tentativas de alegria e pequenos acordos diários. A narrativa registra jogos de conversa, visitas, cobranças e pagamentos. Nada disso é tratado como detalhe ilustrativo; são fatos que moldam caráter e decisão. Ao final, as posições se redefinem menos por discursos e mais por atos, seja quem chega para ficar, seja quem decide atravessar a rua sem pedir bênção. As últimas imagens resguardam o cotidiano como campo de disputa em que palavras viram regra e a regra cobra pedágio no portão.

Filme: Um Limite Entre Nós
Diretor: Denzel Washington
Ano: 2016
Gênero: Drama
Avaliação: 9/10 1 1
★★★★★★★★★