Quando as estruturas morais parecem fadadas à ruína mais estrondosa, o amor apresenta-se como uma das únicas forças capazes de empreender alguma mudança. Regida pela lógica da economia de mercado e pela idolatria da imagem, a sociedade pós-moderna, a sociedade do cansaço, reduz o valor de tudo e de todos a cifras, status e aparências. Romântico, fraternal ou solidário, o amor persiste, afirmando-se como a recusa à legitimação dos relacionamentos mercadológicos, dos quais os indivíduos precisam sempre tirar alguma vantagem. Ilusões não pagam dívidas, mas o sucesso passa longe de asseverar estabilidade além da material — e às vezes nem isso. O sentimento amoroso dormita em algum escaninho obscuro da mente, implorando por uma oportunidade de provar-se venturoso.
Indivíduos são pressionados a moldar-se de acordo com padrões financeiros e estéticos impostos por uma engrenagem silenciosa, enigmática, mas competente, que exalta aqueles que se enquadram e relegam à segregação mais desumana os que não conseguem acompanhar a manada. Sorrateiramente, a vaidade torna-se um dispositivo por meio do qual podem-se estabelecer novos ídolos, falsos deuses, admiradores incondicionais, fama de vidro. Verdade e mentira amalgamam-se numa poção nauseante e malcheirosa, que enfeitiça os mais desavisados, e o mundo inteiro termina como um pântano de veneno.
Sem sombra de dúvida, uma maneira de escapar às armadilhas da plenitude fajuta é descobrindo-se e aperfeiçoando-se o talento. Essa importância da certeza de se fazer o que se gosta com requintes de perfeição é o que tempera a vida, a sua e a dos outros. Pensadores, artistas, acadêmicos, os empresários conscientes, o trabalhador dedicado, todos têm consigo a chance de tornar o mundo um lugar mais afeito à beleza, ao saber, a uma convivência mais saudável e menos inculto. Nestes tempos sombrios, surgem autoproclamados salvadores em qualquer esquina, e, paradoxalmente, as pessoas estão mais desorientadas — mesmo que não o reconheçam ou sequer deem por tal. A sina do homem é buscar redenção, tapeando a si mesmo com vitórias tolas, que não levam a nada.
Nesta lista figuram sete longas nos quais, de uma maneira ou de outra, essas impressões. São filmes que chegaram à praça no decorrer deste cada vez mais exíguo 2025, e, despretensiosamente, vão suscitando martirizantes dúvidas no espectador. Incorporados ao catálogo da HBO Max, da Netflix e do Prime Video, são histórias que o cinema insiste em contar e insistimos em não absorver. Até quando?
Divulgação / A24Segundo longa-metragem de Celine Song após o ótimo “Vidas Passadas” (2023), “Amores Materialistas” é uma comédia romântica que desafia convenções ao explorar as interseções entre amor, dinheiro e identidade na Nova York contemporânea. Inspirada na experiência pessoal da diretora como organizadora de casamentos, a trama acompanha Lucy (Dakota Johnson), uma profissional bem-sucedida que organiza relacionamentos com base em critérios objetivos, como renda e aparência. Entretanto, sua própria vida amorosa entra em conflito quando ela se vê dividida entre Harry Castillo (Pedro Pascal), um milionário generoso, e John Pitts (Chris Evans), seu ex-namorado, um ator em dificuldades financeiras. O filme subverte os clichês do gênero ao tratar o amor não como destino ou acaso, mas como uma escolha corajosa que exige vulnerabilidade. Song utiliza o triângulo amoroso para questionar a lógica transacional dos relacionamentos modernos, onde o afeto muitas vezes é mediado por status e segurança material. A estética refinada, com fotografia em 35mm de Shabier Kirchner, além da trilha sonora de Japanese Breakfast, conferem ao longa um tom sofisticado e emocionalmente ressonante. “Amores Materialistas” é uma reflexão sensível sobre o que significa amar num mundo onde sentimentos e cifras se entrelaçam. Com performances carismáticas e direção precisa, o filme reafirma Celine Song como uma das vozes mais promissoras do cinema contemporâneo.
Divulgação / NetflixFilmes protagonizados por animais sempre hão de receber do público a imediata atenção que histórias sobre homens comuns e mulheres corajosas levam bons minutos para conquistar, exceção reservada às tramas sobre crianças-prodígio ou as que enfrentam doenças inexplicáveis, de que muitas vezes acabam não escapando. Desde “Lassie, a Força do Coração” (1943), de Fred McLeod Wilcox (1907-1964), o cinema tira todo o proveito que consegue dos enredos sobre as delicadas questões que massacram os seres humanos encaradas sob a ótica dos cães, e “Caramelo” vai por aí. O novo longa do paulista Diego Freitas revela-se uma bela sacada ao explorar lados óbvios (e nem tanto) de uma das mais unânimes paixões do brasileiro. O personagem-título, um vira-lata de três anos, transforma a realidade de Pedro Dantas, um aspirante a chef de cozinha até então não muito chegado a interações com outras espécies, e juntos eles descobrem o prazer de uma amizade franca que não demora a transformar-se em amor verdadeiro. Rafael Vitti destaca a face solar de Pedro para, na sequência, o filme evoluir em sua porção quase trágica, também caudalosa, amenizada, evidentemente, por, Caramelo — ou melhor, Amendoim, o mais novo astro do nosso cinema.
Ken Woroner / NetflixEm “Frankenstein”, Mary Shelley (1797-1851) urde um sonho tresloucado, falsa ideia de interesse coletivo, mas que é a compensação solitária de vaidades muito íntimas, de mágoas bastante profundas. Questionando imagens cristalizadas no inconsciente de toda uma geração, cercada pelo passado que resiste em ceder lugar ao futuro, corporificado por máquinas que aludem a uma nova era e novos desafios ao mesmo tempo em que abre espaço para avaliar sua importância, Guillermo Del Toro segue as pegadas de Shelley em sua versão para um dos maiores clássicos da literatura universal. Também para Del Toro, o monstro de Shelley — justamente denominado de “O Prometeu Moderno”, referência ao personagem da mitologia grega que rouba o fogo, a representação por natureza da técnica e da sabedoria, e é castigado a viver eternamente, mas em agonia insuportável — é uma pobre criatura. Aqui, o diretor-roteirista leva “Frankenstein” para 1857, transcorridos seis anos da morte de Shelley, e o enredo alude à conclusão do romance, no Ártico. O monstro e seu criador estão prestes a acertar suas contas num navio encalhado numa geleira, não sem antes espalharem destruição e morte entre os tripulantes. Os cenários desenvolvidos por Tamara Deverell para esse flashback, sobretudo a casa-laboratório do doutor Victor e as ruas da Londres vitoriana, são obviamente inspirados nas ambientações do filme de Lanthimos, e a fotografia de Dan Laustsen faz bom uso dos tons azulados e rubros vistos em “O Labirinto do Fauno” (2006) e “A Forma da Água” (2017). Muito da substância dramática do longa deve-se a Jacob Elordi, seguido de perto por Oscar Isaac. A parceria dos atores define cada desdobramento de “Frankenstein”, e as ótimas surpresas são uma marca desta nova leitura. Epítome genial do que foi a vida mesma de Mary Shelley, sempre a combater titãs como o pai, o jornalista e escritor William Godwin (1756-1836), “Frankenstein” continua um símbolo da busca por lugar num mundo mais e mais desumanizado, repleto de seres cuja anomalia não está na carne.
Divulgação / Paris FilmesNey Matogrosso não é masculino ou feminino, mas uma entidade, um espírito que guarda as florestas e as águas materializado em seu canto andrógino. Este poderia ser um grande problema em “Homem com H”, mas o diretor-roteirista Esmir Filho acha o tom certo entre a magia de um garoto em seu doído processo de autoconhecimento e a ânsia por liberdade que, enfim, se materializa. Esmir propõe uma confusão deliberada entre a persona Matogrosso e Ney de Souza Pereira, um rapaz judicioso, romântico, até ingênuo, que gostava de usar o palco para instigar o público a rever seus conceitos e digerir seus preconceitos. “Homem com H” prima pela originalidade ao dar mais ênfase às sensações que às datas, complementando o rol de minuciosas retrospectivas cronológicas da biografia assinada pelo jornalista Julio Maria em 2021. “Homem com H” é um achado ao desvelar Ney como o garoto admirado com as curvas e a voz de Elvira Pagã (1920-2003), uma diva cujos passos seguiu, porém sempre em busca de sua própria marca. Nem preto, nem branco, nem índio e nem homem, nem mulher — ou tudo isso junto —, Ney Matogrosso é um inclassificável.
Divulgação / LionsgateMovidos pelo amor que transcende a natureza, bons pais fazem tudo por seus filhos. O mundo vem abaixo, a ruína das finanças deixa de ser uma ameaça volátil para converter-se numa sufocante realidade, mas os filhos continuam a tomar o centro das atenções de gente como Scott Michael LeRette. Misturando emoção e senso prático, exatamente como LeRette, “Invencível” descreve muitas das sensações de um pai depois da chegada de seu primogênito, Richard Austin, uma criança adorável, mas de saúde de vidro. A adaptação do diretor Jon Gunn e da corroteirista Susy Flory para “The Unbreakable Boy: A Father’s Fear, a Son’s Courage and a Story of Unconditional Love” (“o menino inquebrável: o medo de um pai, a coragem de um filho e uma história de amor incondicional”, em tradução literal; 2014), livro autobiográfico em que LeRette conta de suas descobertas e reflexões com e sobre Austin, frisa ambos os lados, os pesares e os prazeres da convivência com um portador da osteogênese imperfeita (OI), um mal genético raro que enfraquece os ossos a ponto de se quebrarem ao menor atrito. Gunn registra a juventude de LeRette, um rapaz afoito, namorador e com uma clara propensão ao alcoolismo que vai se acentuando. Admitam ou não LeRette, Gunn e Flory, mas há um tom farsesco em “Invencível”, administrado com habilidade por Zachary Levi, Meghann Fahy e, por óbvio, Jacob Laval. A interpretação de Laval para Austin, com destaque para a tagarelice eloquente do menino e a fixação por chapéus — seu favorito é um de bobo da corte, meio renascentista —, é um bálsamo na abordagem de um tema ainda hoje maldito, muito por causa do politicamente correto.
Divulgação / Warner Bros.Bong Joon-ho é um homem ousado. Poucos cineastas sabem como dizer verdades incômodas e fomentar discussões cada vez mais urgentes como o sul-coreano, que, merecidamente, adicionou ao currículo láureas a exemplo do Oscar de Melhor Filme por “Parasita” (2019), o primeiro longa de língua estrangeira a vencer nessa categoria, agraciado também com a Palma de Ouro de Cannes — e fazia cerca de setenta anos que uma mesma produção não conquistava os dois prêmios máximos mais importantes do cinema. Se “Parasita” abriu os olhos do mundo para o que tem feito a indústria cinematográfica da Coreia do Sul, “Mickey 17” entra na equação como um catalisador dos novos desejos do público e do pensamento refinado do diretor, que nunca se furtou a tocar nas chagas expostas da humanidade desde muito antes da fama. “Mickey 17” parece, aliás, uma fusão de “Parasita” com “Expresso do Amanhã” (2013), uma história sobre ultrarricos que bancam o fomento de pesquisas sobre a colonização de um outro mundo, no qual pobres são mais que desassistidos: são a escória.
Divulgação / Warner Bros. PicturesHá quase noventa anos, uma criatura entre a Terra e o espaço reforça valores como justiça, humildade e benevolência. Não obstante sua cara de homem comum, essa figura enigmática guarda poderes que indivíduo nenhum jamais terá, e por essa razão nunca pôde assistir aos despautérios que acontecem no mundo sem tomar partido. Jerry Siegel (1914-1996) e Joe Shuster (1914-1992) não sabiam quão popular seria o personagem que criaram em 1938 para a DC Comics, mas uma conjuntura nefasta de incertezas, guerra, privação, fome e morte foi de toda a relevância para consagrar Superman como um dos símbolos da dominação cultural, o soft power dentro da sociedade da pólvora e dos acordos secretos e iníquos por excelência. A versão de James Gunn para a história do kryptoniano adotado por Martha e Jonathan Kent, dois caipiras de Smallville, cidadezinha fictícia do Kansas, parece de alguma maneira querer redimir o super-herói pelos equívocos de seus criadores. O diretor-roteirista confere a seu Superman a aura de guia moral para novos tempos sombrios, o que arrasta uma multidão de fãs, mas também acorda uma miríade de detratores. David Corenswet e Nicholas Hoult dividem os melhores momentos deste novo “Superman”, mas o público mais fiel também entusiasma-se com o Senhor Incrível encarnado por Edi Gathegi e o Lanterna Verde de Nathan Fillion, entre sequências em que Clark e Lois Lane, sua eterna namorada, tentam acertar os ponteiros em meio ao caos que cerca o alter ego do jornalista mais discreto do “Planeta Diário”. O guardião da esperança da humanidade inventado pela DC parece já ter jogado a toalha, mas a franquia não perde a força.


