Do Top 10 por 188 dias ao status de cult no Prime Video: o thriller psicológico de Florence Pugh Divulgação / New Line Cinema

Do Top 10 por 188 dias ao status de cult no Prime Video: o thriller psicológico de Florence Pugh

Em “Não Se Preocupe, Querida”, a vida numa comunidade planejada gira em torno de rituais diários: os homens saem para um trabalho sigiloso, as mulheres ocupam a cidade com aulas, compras, encontros e festas que repetem horários, rotas e sorrisos. O arranjo parece blindar dúvidas, até que pequenas falhas de percepção desalinham a rotina de Alice, que passa a desconfiar da narrativa oficial e das proibições que cercam o deserto ao redor. O conflito nasce quando a busca por explicações tromba com autoridades carismáticas e com o medo coletivo de arriscar a paz aparente.

Dirigido por Olivia Wilde, o filme tem Florence Pugh como Alice, Harry Styles como Jack, Chris Pine como Frank, Gemma Chan e KiKi Layne em papéis decisivos. A direção toma a forma de um thriller psicológico: pistas surgem, versões se chocam, e a protagonista precisa medir cada gesto sob olhares que parecem amistosos. Desde os primeiros minutos, a cidade impõe regras sem detalhá-las, e é nesse silêncio que o suspense respira. O cenário impecável sustenta o pacto social, mas também expõe o preço da conformidade quando alguém se afasta da fila.

A encenação investe no controle do quadro. Ruas simétricas, jardins milimétricos e festas coreografadas formam um mapa previsível que orienta o olhar e delimita o desejo. A fotografia insiste em reflexos e superfícies polidas; espelhos e vidraças devolvem imagens duplicadas que sugerem versões concorrentes do mesmo rosto. A repetição não aparece como enfeite: indica que a cidade depende de uma rotina rígida para manter o consenso. Quando essa ordem trepida, o som se torna guia — batidas secas, vozes que se aproximam pelo canto da sala, uma melodia que parece chamada. O desenho sonoro prepara decisões e instala incerteza antes que os personagens admitam o incômodo.

Florence Pugh estrutura a progressão dramática com sinais concretos. Primeiro, o olhar que demora nos vizinhos; depois, mãos que hesitam; mais tarde, a recusa a aceitar justificativas prontas. A atriz dá peso ao corpo em cena, alternando calma e alerta de modo que cada passo pareça custar algo. Harry Styles compõe um parceiro dividido entre afeto e necessidade de pertencer ao grupo que o valida. A relação entre os dois muda de temperatura em refeições, conversas íntimas e eventos sociais, sempre modulada por quem pode ou não falar alto. Chris Pine incorpora um líder que não precisa gritar: controla pelo elogio, pela festa, pela promessa de propósito. Quando ele transforma um jantar em tribuna, o filme expõe a frieza por trás do carisma.

O roteiro de Katie Silberman administra informações com parcimônia e avança no regime de pressão constante. Não se trata de antecipar truques, e sim de observar como versões do mundo competem diante de sinais desencontrados. O texto privilegia causa e efeito em gestos cotidianos: um convite aceito altera a disposição de uma mesa; um exame clínico imposto define quem circula; uma conversa interrompida muda alianças. A cada obstáculo, Alice precisa recalcular estratégias, negociar com Jack, medir riscos e escolher se volta ou insiste. Essa sequência de decisões sustenta a dúvida que impulsiona o suspense sem exigir enigmas arbitrários.

A câmera favorece distâncias que comprimem a personagem principal, usando enquadramentos que a cercam por portas e molduras. Em coreografias de dança e encontros sociais, a montagem alterna planos abertos, que exibem pertença e espetáculo, com cortes rápidos que acentuam controle e isolamento. O uso de padrão visual — círculos, linhas paralelas, pares em simetria — não busca apenas beleza, mas sinaliza fiscalizações discretas, inclusive entre vizinhas. Os figurinos reforçam pertencimento e hierarquia: cortes impecáveis para as anfitriãs mais influentes, sutil variação de tecidos e brilhos em festas que também funcionam como assembleias.

Quando o filme desloca o foco para a hipótese tecnológica que sustenta aquele paraíso, a mudança reorienta a leitura para o campo da ficção científica. A pergunta deixa de ser apenas “quem manda?” e passa a incluir “qual ferramenta permite esse mando?”. A reviravolta traz explicações que nem sempre se alongam, mas o essencial fica demonstrado: ali, consentimento é redefinido e desejo é domesticado por meios que atravessam o cotidiano. O efeito dessa guinada se vê nas reações dos casais, no tipo de cuidado médico oferecido e na insistência de discursos que tratam qualquer desvio como doença a ser corrigida.

A presença de Gemma Chan, em especial, planeja uma camada de disputa silenciosa dentro da própria elite local. Seu controle do tempo das falas e do olhar indica que os acordos no topo também têm rachaduras. KiKi Layne, em aparições concentradas, aciona o primeiro alarme e obriga a comunidade a escolher entre compaixão e punição. O elenco de apoio — vizinhas, instrutoras, anfitriões — sustenta o clima de polidez armada, em que perguntas inocentes carregam recados e convites amistosos podem funcionar como avisos.

O filme evita moralizações diretas. Prefere mostrar procedimentos — consultas, orientações, festas, viagens curtas — e deixar que a repetição revele o que se pretende esconder. Ao longo do percurso, o suspense depende menos de aparições repentinas e mais de um cerco que se fecha por meios cotidianos: o carro que só vai até onde pode, a estrada vigiada, a recomendação de descansar em vez de perguntar. A cada recuo forçado, a protagonista aprende a testar limites de outra forma, seja pelo caminho, seja pelo tempo escolhido para agir. Essa engenharia de passos medidos dá densidade à escalada sem exigir atalhos retóricos.

Quando Alice passa a lembrar com mais nitidez, cada objeto do cenário ganha novo peso. Copos, cortinas, eletrodomésticos e decorações deixam de ser adornos e viram sinais de um contrato social que cobra silêncio. A narrativa, então, intensifica o confronto entre convívio e autonomia, e a cidade planejada revela sua dependência da obediência feminina. O suspense se mantém ao conectar decisão e consequência, sem recorrer a grandes discursos. O que move a ação é a escolha prática: quem dirige, quem pega a chave, quem liga a máquina, quem decide a hora de sair.

Mesmo com alguns atalhos explicativos no terço final, o conjunto preserva coerência interna suficiente para sustentar a leitura proposta: a ordem ideal precisa de controle constante, e o custo desse controle aparece no corpo de quem ousa lembrar. A trilha sonora marca pulsos e acelerações, guiando passos e indicando riscos; a montagem intensifica o calor das salas e o silêncio do deserto; a fotografia alterna brilho e desconforto para que a promessa de conforto revele seu preço. O plano derradeiro fixa uma ação simples e definitiva: o suspiro de Alice precede o arranque do motor.

Filme: Não Se Preocupe, Querida
Diretor: Olivia Wilde
Ano: 2022
Gênero: Drama/Mistério/Thriller
Avaliação: 9/10 1 1
★★★★★★★★★