Muito da excelência de “A Viagem de Meu Pai” deve-se ao teatro. Florian Zeller apresentou “Le Père” (“o pai”, em tradução literal; 2014) nos palcos do Théâtre Hébertot, em Paris, com Robert Hirsch (1925-2017) e Isabelle Gélinas, sem saber que estava prestes a revolucionar sua carreira e contribuir para um dos momentos mais sublimes do cinema contemporâneo. O espetáculo, ganhador do Prêmio Molière de Melhor Peça de 2014, dava sinais de que iria longe já na estreia, num hoje vago setembro de 2012, exatamente por reunir num mesmo espaço diminuto dois atores em plena capacidade de seu ofício e um texto complexo, rico, cheio de mil desdobramentos, além da impecável produção, que captava cada detalhe do que era falado e punha em cena uma pletora dos elementos que transportavam a audiência para a mente em ruínas do personagem central, que por sua vez ia do concreto para a realidade paralela que criara da mesma forma como o sonhador desperta aos sobressaltos no meio da noite, ansiando por tomar a fresca, e volta a embalar pouco depois, reencontrando tudo como deixara. Combinando leveza e melancolia, o diretor Philippe Le Guay emociona ao capturar os últimos lampejos de autonomia de alguém que não se dobra ao peso dos anos e às tantas limitações da velhice. E quem o repreenderá?
Claude Lherminier vai cedendo espaço a um outro homem, que nem ele mesmo conhece. Faz algum tempo, ele mora sozinho em seu apartamento num bairro nobre de Paris, rodeado por lembranças e antiguidades, resistindo aos golpes humilhantes da demência. A avalanche não se resigna a arrebatar só o doente, e logo chega a qualquer pessoa com quem tenha o mais tênue vínculo, tornando as possíveis soluções uma verdadeira catástrofe. Le Guay e o corroteirista Jérôme Tonnere tiram da relação entre Claude e sua filha, Carole, quase todas as melhores sequências, as que explicam muito do que Zeller quis contar, mormente do segundo ato em diante, mas reserva lugar às conversas desse curioso anacoreta e sua empregada, a senhora Forgeat, em lances que não deixam de também acusar o desajuste social do chefe. Ele espalha coisas pelo quarto e deita-se no chão, tentando fazer a pobre mulher sentir-se a pior das criaturas por ter atrasado 35 minutos, afinal, se ela estivesse onde deveria estar, ele não teria caído. O que ele deseja, no fundo, é que sua cuidadora o leve até a cidade, não sem antes descobrir sua posição favorita na cama. Édith Le Merdy empresta ao longa um toque cômico que suaviza a escalada do drama, distribuído entre Claude, Carole e mais alguns tantos personagens, reais ou não, em busca de calor.
Por uma razão que o diretor esmiúça aos poucos, a partir de uma garrafa de suco de laranja, a Flórida é sempre mencionada, inclusive no título original do filme. Foi para lá que Alice, a filha caçula de Claude, mudou-se há quinze anos, na esteira de um processo de afastamento traumático e misterioso, que ele anseia por reverter. Nunca se consegue saber ao certo quando Claude delira ou abre para o espectador suas apreensões lógicas do mundo, incluindo, por óbvio, a doença que nega, mas que percebe ser um fato. Jean Rochefort (1930-2017) pula de uma personalidade para a outra, marcando-as com variações sutis no olhar, nos gestos e na forma como Claude anda e se dirige aos que falam com ele, até Carole, mais e mais esgotada. A filha mais velha abdica da própria felicidade pelo bem-estar do pai, suportando suas implicâncias e os engenhosos planos para evitar a internação numa casa de longa permanência, que acabam virando contra ele. A subtrama do relógio de estimação supostamente desaparecido exposta por Zeller em “Meu Pai” (2022), um trabalho inesquecível de Anthony Hopkins e Olivia Colman, é tratada com um humor despretensioso, quase involuntário, técnica que o cinema francês domina como nenhum outro. Tudo isso para que, ao final, Claude Lherminier se convença de que a Flórida não é tão luminosa quanto pensa.
★★★★★★★★★★

