Um empresário do Mississippi vê o negócio da família encurralado após um acordo verbal não cumprido por um conglomerado do setor funerário. Endividado e pressionado por prazos, ele busca saída possível no litígio, mas a disputa parece desproporcional: de um lado, uma rede internacional; do outro, uma empresa regional que precisa honrar compromissos e manter empregos. Em “O Próprio Enterro”, Maggie Betts acompanha o avanço dessa contenda até o tribunal, onde estratégias, vaidades e dados financeiros viram prova e espetáculo. Jamie Foxx interpreta o advogado Willie E. Gary, escolhido pela confiança em sua oratória e pela habilidade em conversar com jurados; Tommy Lee Jones vive Jeremiah O’Keefe, patrão austero, mais afeito a recibos do que a microfones. Jurnee Smollett surge como a advogada Mame Downes, ponta afiada da defesa do grupo acusado, e Bill Camp compõe Ray Loewen, executivo que administra a crise com sorriso contido. O filme adapta artigo de Jonathan Harr publicado na revista The New Yorker, que relatou o caso envolvendo O’Keefe e a Loewen Group.
A exposição inicial delimita forças e recursos. Há parcelas atrasadas, exigências regulatórias e um contrato que, no papel, ainda espera assinaturas e anexos. O’Keefe precisa vender parte do negócio para equilibrar contas, mas a contraparte posterga fechamentos e muda termos. Betts enquadra o desequilíbrio de meios: salas amplas, equipes numerosas, consultores, estudos demográficos, gráficos; do outro lado, encontros em escritórios menores, arquivos em pastas de cartolina e calculadora de mesa. Essa assimetria alimenta o enredo e define a urgência de contratar um advogado conhecido por arrancar acordos generosos. Gary entra em cena com terno reluzente e apresentação de equipe em tom de show, porém cada gesto serve a um propósito: estabelecer autoridade, marcar território e, principalmente, pautar a história que os jurados irão seguir.
A diretora organiza a progressão em três frentes: investigação do passado contratual, mapeamento de fragilidades do conglomerado e construção de imagem pública dos personagens. Nas visitas a arquivos e cartórios, o assistente Hal Dockins (Mamoudou Athie) rastreia minúcias que sustentam perguntas e decisões. O trabalho de câmera favorece rostos e mãos ao manusear documentos, enfatizando a materialidade do litígio. Na arena principal, o tribunal, a fotografia de interiores usa luz controlada para destacar madeiras e carpetes, reforçando a sensação de ritual. O som capta tosses, sussurros e arrastar de cadeiras, ruídos que pontuam hesitações e viradas de humor diante de uma testemunha reticente ou de um dado contábil difícil de explicar.
Quando Gary assume o púlpito, a montagem acompanha o pulso de suas intervenções. Foxx dosa pausas e acelerações, alternando piadas rápidas e frases curtas com perguntas encadeadas. O efeito é prático: encurralar a versão da outra parte, isolar contradições, aproximar o júri de uma percepção de abuso. Do outro lado, Mame Downes investe em precisão de termos, busca enquadrar cada resposta e vigia o tempo de exposição do adversário. Smollett ensaia pequenos sorrisos, olha para a banca e para os jurados, mede reações e ajusta o tom. A disputa se dá menos por gritos do que por escolhas de vocabulário, pela ordem das perguntas e por quais números ganharão destaque no quadro.
A atuação de Tommy Lee Jones ancora a história numa figura cansada que sabe o valor de cada centavo pago a credores. Ele fala pouco, prefere olhar e apertar os lábios enquanto assiste às falas do seu representante. Em uma visita à empresa, observa funcionários, percorre estacionamentos, confere anotações; a câmera mantém distância média, sugerindo que o proprietário tenta manter controle do que ainda pode salvar. Esse comportamento contido contrasta com a exuberância de Gary, e o contraste serve a um objetivo: o empresário precisa de alguém que faça barulho no lugar dele, sem parecer oportunista diante da comunidade.
O filme expõe, com clareza, como a dimensão racial pesa na percepção do júri e na cobertura da imprensa. Betts inclui sequências em que lideranças locais e grupos religiosos ocupam bancos da plateia, não como massa de fundo, mas como auditoria das escolhas em jogo. Quando a narrativa aborda práticas do setor — compra de pequenas casas funerárias, padronização de serviços, aumento de preços —, o roteiro insere exemplos que conectam números a rostos. A crítica ao modelo de expansão corporativa ganha corpo à medida que e-mails, cláusulas e depoimentos compõem um retrato de pressão por margens e metas.
A encenação privilegia o vaivém de perguntas e respostas em cortes limpos, evitando firulas. Maryse Alberti ilumina a sala de audiência com parcimônia, permitindo que tons de marrom e cinza predominem; o figurino demarca status e personalidade sem exageros. A trilha de Michael Abels entra para sublinhar viradas de humor e momentos de espera, recuando quando a fala precisa ocupar o centro. Não há longas panorâmicas de cidade ou tentativas de transformar o processo em espetáculo pirotécnico. O espetáculo está no domínio de retórica, nos silêncios calculados, no brilho do sapato que se move um passo à frente do microfone.
A narrativa reserva passagens para o bastidor da advocacia de alto risco: negociação de honorários, divisão de tarefas, ensaios de testemunhas. Nessas cenas, Betts deixa claro como repertório e preparo contam tanto quanto carisma. Gary testa metáforas, ajusta comparações, decide quais documentos mostrar primeiro. A montagem destaca rabiscos em blocos e a ordem de cartões, indicando que o improviso tem base sólida em planejamento. Essa engrenagem se revela quando o advogado percebe, no meio de uma audiência, que a história contada pela empresa não fecha com a sequência de decisões gerenciais registradas em relatórios.
Jurnee Smollett, como Mame Downes, evita vilania simplificada. Seu trabalho demonstra foco em preservar imagem institucional e evitar danos catastróficos, argumento a argumento. Quando ela pressiona uma testemunha, o objetivo imediato é estancar sangria, não humilhar. Bill Camp, por sua vez, entrega um executivo que calcula efeitos antes de admitir falhas. Os encontros com consultores revelam uma mentalidade de planilha que trata pessoas como linhas de custo, o que facilita a leitura do júri quando dados de exploração territorial e diferenciação por renda vêm à tona.
Em meio a audiências e manobras, a relação entre Gary e O’Keefe evolui por etapas: desconfiança, ajuste de expectativas, pacto. Pequenos gestos traduzem avanços: uma ligação atendida de imediato, uma cadeira puxada, um acordo sobre quem fala e quando. Esse vínculo interfere na condução do caso, pois a credibilidade do dono impacta a recepção de cada argumento do advogado. A direção registra essas mudanças sem discursos autoexplicativos; prefere olhares, apertos de mão e o simples ato de dividir um banco antes de uma sessão.
A opção por humor controlado cumpre função tática. Piadas pontuais quebram tensões, aproximam jurados e reforçam imagem de proximidade. Foxx joga com ritmo e brilho no olhar, mas recua quando a narrativa exige gravidade. Esse balanço ajuda a sustentar duas horas de embate jurídico sem saturar o espectador com jargões. O texto prioriza verbos diretos: provar, refutar, comparar, cruzar. Quando a acusação abre caminho para debates maiores — racismo institucional, assimetrias regionais, captura de mercado —, a direção ancora tudo em exemplos palpáveis: valores cobrados, cláusulas de fusão, prazos, porcentagens.
Ao distribuir foco entre investigação, bastidores e tribunal, Betts constrói uma linha de avanço que reforça causalidade: cada descoberta documental informa uma pergunta; cada pergunta bem-sucedida pressiona a composição de um acordo; cada pressão altera o comportamento dos executivos e o humor dos jurados. Não há atalhos mágicos, apenas trabalho paciente em cima de papéis, memórias e incoerências expostas sob juramento. A precisão das atuações sustenta essa lógica, e o desenho de produção acompanha com ambientes reconhecíveis e funcionais.
Quando o caso atinge fase decisiva, a encenação abandona efeitos de surpresa fáceis e aposta na consequência de escolhas anteriores. Se um e-mail contraria depoimento, a câmera permanece nos rostos para registrar a reação; se um gráfico desmonta narrativa de desempenho, o quadro abre o suficiente para enquadrar a mesa da defesa e o incômodo visível. O filme confia no interesse do público por procedimentos e mantém atenção ao detalhe que move a agulha do veredito.
A última imagem fora da sala de audiência sugere que vitórias jurídicas também cobram manutenção. Contas precisam ser pagas, contratos reescritos, equipes realocadas. O’Keefe confere a agenda sobre a mesa e pede a próxima reunião; Gary recolhe o paletó e retorna ao telefone.
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