Nada em “Golpe Duplo” quer ser modesto. Tudo reluz como se o filme estivesse certo de que o brilho próprio bastaria para convencer o público de que criminalidade é um talento glamoroso, quase um esporte olímpico praticado apenas pelos mais charmosos. E confesso que, por alguns minutos, esse delírio sedutor faz sentido: Will Smith desfila uma segurança calculada, Margot Robbie irradia magnetismo espontâneo e o luxo das locações convida qualquer espectador a abandonar a realidade por duas horas. Só que, ao contrário da arte da trapaça que o longa toma como base, o deslumbre tem prazo de validade curto. Há uma pressa desconfortável em nos fazer acreditar que tudo aquilo forma uma história sólida e não apenas um desfile de seduções ambulantes.
Eu acredito no prazer como força vital do cinema. Se o golpe não excita, por que seguir adiante? O problema evidente é que “Golpe Duplo” tenta sustentar o prazer exclusivamente no jogo romântico, como se o perdão do público fosse automático diante de dois belos criminosos que interagem com um sorriso. A dinâmica entre Nicky e Jess funciona até certo ponto. Porém, quando a narrativa confunde paixão com profundidade, a química perde fôlego. Não por falta de charme dos intérpretes, mas porque tudo parece calculado demais, como se a intimidade entre eles fosse mais um truque da carteira do protagonista do que uma fagulha genuína. Há uma artificialidade insistente na forma como o filme tenta convencer de que aquele casal incendia a tela, enquanto o fogo visível está mais próximo de uma brasa tímida escondida sob figurinos caros.
A sequência do jogo de futebol americano, no entanto, merece atenção. Ali, finalmente, o filme acredita no próprio enredo. O prazer do risco, a matemática do engano, o triunfo e o desespero se devoram mutuamente no olhar dos personagens. Durante aqueles minutos, tudo o que o longa promete se concretiza: tensão vibrante, inteligência no crime, humor sutil. O espectador se vê hipnotizado pelo abismo financeiro que se aprofunda a cada lance. O cinema funciona melhor quando nos convida a acreditar que estamos à beira de algo imprudente. E naquela partida, a imprudência é deliciosa.
O restante retorna à hesitação inicial. “Golpe Duplo” quer ser filme de assalto, mas evita qualquer complexidade que torne o plano do protagonista algo além de um talento sobrenatural convenientemente explicado pela simples justificativa de que ele é bom demais no que faz. Quer ser comédia romântica de luxo, mas tem medo de mergulhar em vulnerabilidades que realmente comprometeriam sua fachada brilhante. Quer surpreender o público com reviravoltas sucessivas, embora a repetição dessa estratégia acabe desgastando seu efeito. Não existe revolução narrativa quando se usa o mesmo truque atrás do outro.
Há, porém, uma sinceridade silenciosa em seu desejo de encantar. O filme acredita honestamente que diversão basta como argumento estético. E essa crença, por si só, já sustenta uma parcela da experiência. Eu, hedonista convicta, não condeno quem prefere uma taça de espumante à filosofia. Só lamento que a taça aqui esvazie rápido. Quando o plot twist se repete pela terceira vez, o espanto já virou hábito, quase um tique nervoso de roteiro. E nenhuma sedução sobrevive à previsibilidade.
Ainda assim, há algo prazeroso em observar Will Smith exercendo controle sobre a arte da persuasão, brincando com vulnerabilidade do jeito que só ele consegue: com aquele olhar que denuncia um passado complexo por trás do sorriso vendido como garantia. Margot Robbie, por sua vez, confirma que nasceu para confundir qualquer linha entre inocência e manipulação. Ela ilumina o que deveria ser sombrio e torna perigoso o que parece dócil.
A contradição final permanece intrigante: o filme insiste que tudo se resume à confiança, um conceito frágil demais para sustentar relações entre vigaristas. Talvez a solução fosse assumir, de uma vez por todas, que ali ninguém confia em ninguém e que o amor, quando entra em cena, só faz as regras do jogo mais cruéis e saborosas. O que impede “Golpe Duplo” de se tornar inesquecível é o medo de escolher. No fundo, ele prefere ficar no meio termo, sem correr grandes riscos. E ironicamente, para uma história sobre pessoas que vivem do risco, essa covardia soa quase como um pecado mortal.
Quando o filme acaba, a mente crítica se pergunta onde estava o crime inesquecível prometido lá no início. Se o cinema é um convite ao prazer, aqui recebemos apenas um aperitivo do banquete que poderia ter sido. Contudo, mesmo um aperitivo pode ser gostoso o bastante para justificar a saída de casa. Por vezes, o golpe não é grande, mas ainda assim arranca um sorriso cúmplice de quem o testemunha.
★★★★★★★★★★

