Suspense argentino na Netflix vai te deixar sem ar até o último segundo Alan Roskyn / Netflix

Suspense argentino na Netflix vai te deixar sem ar até o último segundo

A história de “Descanse em Paz” abre em Buenos Aires, 1994, quando Sergio Dayán, empresário atolado em dívidas e em tratamento de saúde, enxerga na confusão causada por um atentado a chance de desaparecer e aliviar o peso sobre a família. A decisão, tomada às pressas e guardada a ferro e fogo, inaugura uma existência à margem, com nome falso, trabalho modesto e rotina vigiada pelo medo. O primeiro efeito aparece de imediato: a ausência passa a organizar a vida dos que ficaram, enquanto a nova identidade exige que Sergio economize passos, voz e lembranças para não chamar atenção. A partir dessa encruzilhada, o filme acompanha o esforço para sustentar a mentira e a lenta corrosão que ela impõe ao afeto.

No centro, Joaquín Furriel interpreta Sergio com contenção e fadiga acumulada; Griselda Siciliani vive Estela, esposa que administra contas e luto; Gabriel Goity encarna o credor que empurra o protagonista ao limite. Dirigido por Sebastián Borensztein, “Descanse em Paz” adapta o livro “Descansar en paz”, de Martín Baintrub, e assume a forma de drama de consequências, acelerado por elementos de thriller. Ao trazer o título brasileiro para a conversa logo cedo, o filme estabelece seu campo: não o do crime perfeito, mas o da sobrevivência imperfeita e do preço que se paga para sustentá-la.

O enredo avança por dois eixos: a memória da vida interrompida e o cotidiano da fuga. Borensztein opta por encenação discreta em interiores apertados, balcões de repartição, quartos alugados e lojas sem janelas. Esses espaços reduzidos reforçam o estado de vigilância e comprimem as opções do personagem. Quando a narrativa salta no tempo e Sergio observa de longe o crescimento dos filhos, cruza a rua com hesitação e recua antes de tocar uma campainha, a tensão não depende de correria; depende da possibilidade de romper o pacto com o próprio desaparecimento. O risco, aqui, é moral e prático ao mesmo tempo: cada gesto pode revelar uma falha no disfarce ou acender uma culpa antiga.

A direção de atores privilegia pequenos deslocamentos: olhos que evitam, mãos que demoram a entregar um documento, passos que param um segundo antes do encontro. Furriel compõe um homem que aprendeu a economizar presença; fala baixo, evita acenos largos e, quando precisa mentir, escolhe frases curtas. Siciliani dá a Estela força de gestão doméstica sem transformar a personagem em símbolo abstrato: trabalha com contas, horários, favores, o tipo de material concreto que sustenta a casa quando o provedor some. Goity aparece menos do que ameaça, mas a sombra do credor define a pressão de tempo e de dinheiro que empurrou Sergio para a decisão.

A fotografia de Rodrigo Pulpeiro separa mundos: tons cinzentos na cidade que colapsa e luz lavada no exílio, como se a vida nova existisse com saturação reduzida. Essa diferença visual sustenta a ideia de suspensão: Sergio não chega propriamente a lugar nenhum, apenas adia escolhas. A montagem evita truques e privilegia continuidade de ações, o que preserva a lógica dos deslocamentos e a legibilidade dos encontros. Quando a música de Federico Jusid entra, o faz para marcar o avanço da ameaça ou a aproximação de uma fronteira íntima, sem invadir as cenas que dependem de silêncio.

Como suspense, o filme trabalha informação e contrainformação em fluxo constante. Documentos, ligações, boatos e uma visita em data sensível rearranjam a posição de cada personagem no tabuleiro. A pressão não vem de perseguições espetaculares, mas do acúmulo de pequenos riscos: um olhar reconhecido na fila do banco, um registro esquecido, um vizinho curioso. O roteiro rastreia essas possibilidades e as cruza com a necessidade de proteção da família, mantendo o foco na consequência concreta de cada passo. A cada tentativa de reaproximação, Sergio testa um limite e descobre o que ainda consegue preservar sem expor quem pretende amparar.

Há escolhas que simplificam trâmites práticos da vida clandestina, sobretudo na obtenção de papéis e na circulação entre fronteiras. Quando isso acontece, a direção compensa com atenção a procedimentos verificáveis: filas, carimbos, esperas, rotas secundárias. O filme nunca perde de vista que o desaparecimento não apaga dívidas materiais nem laços. Ao contrário, desloca-os. Estela organiza a rotina com a precisão possível, enquanto os filhos crescem sem a referência do pai; o homem ausente, por sua vez, aprende a conviver com notícias que recebe por fragmentos e com a proibição tácita de existir em público.

O uso do atentado real como gatilho narrativo impõe cuidado ético. Borensztein evita espetáculo na encenação dos momentos ligados ao ataque, preferindo planos curtos, objetivos e informativos. Esse recuo coloca a tragédia no lugar de contexto e libera o filme para observar o que ela desencadeia na vida particular do protagonista. Ao apostar nessa proporção, a direção preserva foco em escolhas e efeitos. A violência histórica está lá como fato, não como atração.

Quando o tempo avança e o disfarce já cobra desgaste físico, “Descanse em Paz” reforça a ideia de que a mentira prolongada transforma rotinas simples em campo minado. Trabalhar, pagar aluguel, ir ao mercado, pegar um ônibus: tudo vira teste de memória e de sangue frio. A câmera acompanha esses trajetos com distância funcional, sem adornos, para que se perceba o cálculo por trás de cada ato banal. A dramaturgia, nesse ponto, valoriza o intervalo entre intenção e gesto: Sergio hesita, admite falhas, oculta sinais, tenta recompor a autoestima antes de qualquer aproximação real.

O desfecho não interessa aqui. Importa notar como o filme administra o retorno do personagem à órbita da família como uma série de escolhas de risco, amarradas a datas, documentos e encontros que não admitem retórica. O segredo que sustentou uma vida inteira fica pesado, e a proteção prometida perde eficiência diante do tempo. A constatação é seca e verificável: uma história construída em falso exige manutenção constante e deixa marcas visíveis nos que acreditaram na ausência. A mão que treme antes de tocar a campainha diz mais do que qualquer confissão.

Filme: Descanse em Paz
Diretor: Sebastián Borensztein
Ano: 2024
Gênero: Drama/Thriller
Avaliação: 9/10 1 1
★★★★★★★★★