O filme com Anthony Hopkins no Prime Video que vai te fazer entender o silêncio, a solidão e o sentido da vida Divulgação / Sony Pictures Classics

O filme com Anthony Hopkins no Prime Video que vai te fazer entender o silêncio, a solidão e o sentido da vida

A narrativa abre em Londres sob ameaça aérea. Um médico idoso, doente e exilado recebe um convidado mais jovem para uma conversa marcada por divergências profundas. “A Última Sessão de Freud” apresenta esse encontro como ponto de partida para um duelo de convicções que não recorre a reviravoltas exteriores: a tensão está no que se diz, no que se recusa a dizer e no que o corpo já não consegue ocultar. Anthony Hopkins interpreta Sigmund Freud com a voz arranhada pela dor e gestos calculados, enquanto Matthew Goode vive C.S. Lewis com polidez inicial e convicções em formação. A direção de Matt Brown mantém o foco na relação, deixando que a progressão dramática nasça da escuta e do atrito entre argumentos. O filme adapta a peça de Mark St. Germain, inspirada no livro “The Question of God”, de Armand Nicholi, e preserva o caráter dialógico sem abdicar de recursos de cinema.

A situação dramática é simples: no primeiro encontro, um cético radical testa a resistência da fé recém-assumida do visitante; no segundo movimento, o visitante devolve a carga, expondo o que as teorias do anfitrião custam em termos de afeto e perda. O consultório funciona como campo de jogo, delimitando posições e ritmos. Entre sirenes e blecautes, o exterior pressiona a conversa; a cidade em alerta reforça o prazo curto daquele adeus possível. Essa compressão de tempo confere peso às pausas e ao silêncio entre perguntas.

Hopkins sustenta Freud como corpo em luta. A dificuldade de falar, o manejo do analgésico, o charuto que insiste entre os dedos e vira marca de resistência definem cada frase. O ator trabalha com pequenas inflexões: ironia seca, impaciência com sentimentalismos, carinho torto ao mencionar a filha. Goode opta por uma contenção que não bloqueia a emoção. Aos poucos, a educação britânica abre passagem para lembranças de trincheira, culpa de sobrevivente e uma fé que se organizou frente ao horror. Quando a polidez cede lugar à insistência moral, percebe-se a mudança de força entre os dois: o visitante deixa de ser apenas discípulo relutante para virar o principal opositor do dono da casa.

A encenação de Brown privilegia a clareza de posições. Os atores raramente ocupam o mesmo plano em igualdade de altura; um senta, o outro circula; a câmera acompanha com movimentos curtos; o corte responde a pausas e interrupções, não a frases de efeito. O resultado é um ritmo que respeita a dúvida e sublinha hesitações. A fotografia adota tons outonais e contrasta o aconchego do ambiente com a ameaça do lado de fora. O espaço não é neutro: o divã, as estatuetas na mesa, as estantes cheias de anotações e lembranças indicam um território marcado por escolhas teóricas e afetivas. Cada objeto reforça a impressão de refúgio prestes a ser desfeito.

A montagem recorre a flashbacks breves para ilustrar memórias de trauma e perda. Essas imagens evitam explicações sublinhadas; surgem como lampejos que cortam a conversa e recolocam a disputa em termos concretos. Quando Lewis recorda a frente de batalha, o som ganha textura metálica, e a luz adota frieza que contrasta com a sala. Quando Freud enfrenta a dor da doença, o enquadramento se aproxima do rosto e acompanha a respiração curta. São decisões formais que conectam ideia e corpo, fazendo ver o custo de cada crença.

O som participa dessa estratégia. Sirenes, passos apressados na rua, o estalo de uma janela durante o blecaute, o acender do charuto, o ranger da cadeira: pequenos eventos constroem a percepção de um mundo prestes a desabar. A trilha musical entra com parcimônia e cede espaço ao ruído ambiente, opção que mantém a fala sem ornamento excessivo. O efeito prático é simples: cada pausa pesa mais; cada palavra dita sem música de apoio parece ganhar densidade.

O roteiro evita a tentação de distribuir pontos a quem fala mais alto. Quando Freud descreve a religião como necessidade forjada pelo medo, o filme mostra um homem sob dor crônica, dependente de cuidados, cercado de lembranças e ainda afiado nas perguntas. Quando Lewis afirma que a fé reordena a experiência do mal, o filme o mostra como alguém que precisou sobreviver à lama e à morte de amigos. Em ambos os casos, a tese não paira acima da vida; nasce dela. As intervenções de Anna Freud, interpretada por Liv Lisa Fries, reforçam esse cruzamento entre convicção e rotina: a casa funciona porque alguém organiza remédios, horários e emergências. A relação entre pai e filha, marcada por cuidado e autoridade, adiciona um conflito íntimo que não precisa de discursos prolongados.

A adaptação mantém o eixo teatral, mas utiliza recursos de cinema para criar respiros. Pequenos deslocamentos entre cômodos, ajustes de luz durante o blecaute, mudanças de quadro que isolam um objeto específico, como a prótese, ajudam a modular o tempo sem apelar para pressa artificial. A duração esticada de alguns planos permite que o espectador acompanhe a dor física de Freud, elemento que altera o andamento da conversa: as frases encurtam, os desvios aumentam, a impaciência cresce quando a morfina tarda. Esse detalhe concreto redimensiona a dureza do anfitrião e impede leitura puramente abstrata de suas posições.

O desenho de produção trabalha com materiais e texturas que ancoram a época: madeira gasta, livros empilhados, tecidos pesados. A cidade em estado de alerta aparece por sinais indiretos; a opção reforça o confinamento e mantém o foco na troca entre os dois protagonistas. Quando o exterior invade com força, o filme não muda de registro, apenas recalibra a escuta: a conversa precisa continuar apesar do barulho. Essa persistência dá ao encontro um ar de urgência sem recorrer a melodrama.

A direção confia nos intérpretes e permite que pequenas variações conduzam cada rodada do debate. Um olhar que evita, um copo que treme, um passo fora do ritmo denuncia mais do que qualquer frase categórica. Hopkins administra humor e acidez com controle de tempo; Goode articula curiosidade e firmeza com gestos econômicos. O que se vê é a transformação de uma visita protocolar em ajuste de contas com o passado de cada um.

A impressão dominante é que a guerra exterior apenas dá forma às disputas já existentes entre razão e crença. O consultório, cercado por livros e objetos de outro século, torna-se refúgio e ruína ao mesmo tempo. Na penumbra do blecaute, o charuto de Freud permanece aceso, pequena fonte de calor que resiste enquanto o ruído dos aviões redesenha o horizonte.

Filme: A Última Sessão de Freud
Diretor: Matt Brown
Ano: 2023
Gênero: Drama
Avaliação: 9/10 1 1
★★★★★★★★★