Ixodes poderia ser nome de filme de terror trash. Com direito a sequência. Algo como “Ixodes III — O Retorno da Acarina Mutante”. Não sei se assistiria, tenho certa resistência a produções duvidosas, principalmente as que começam com alguém gritando na floresta e terminam com um vilão que morre, mas deixa evidente que não morreu — o que garante enredo para mais quatro ou cinco continuidades.
Ou, num devaneio literário, posso escrever um livro de contos fetichistas chamado “IX Odes: Nove Histórias Sádicas entre o Noir e o Pânico”. Cada conto, uma fantasia um pouco constrangedora envolvendo insetos, árvores e personagens de moral discutível. Algo que eu jamais teria coragem de publicar, mas adoraria escrever apenas para imaginar o espanto dos leitores que por acaso se deparassem com esses inéditos. “Meu Deus, ele escreveu isso?”.
Há outra possibilidade: Ixódes Silva, o camisa 9 de um time das antigas. A artilharia rude. Barba por fazer. Camisa para fora do calção. A clássica calvície frontal avançando como quem exige passagem. O tipo que comemoraria igual o Evair, braços abertos, expressão estoica, como se dissesse: “Fiz só o meu trabalho, pessoal”. Um atacante que não dribla, não pensa, não negocia: chuta. E chuta muito.
Mas não. Nada disso.
Estou falando do maior perigo daqui, o inimigo número um do reino da paz na Eslovênia. Um monstro. Um bandido. Um assassino. Uma constante ameaça. Uma criatura que mede de 2,5 a 4 milímetros — fêmeas são maiores — e apavora todos em suas incursões semanais mata adentro.
Ixodes ricinus, o carrapato.
O nome científico soa sofisticado, quase elegante. É impressionante como a ciência é capaz de transformar pequenas monstruosidades em algo que parece, no mínimo, respeitável. Se chamássemos o bicho de Toninho, talvez a população tivesse menos medo. Mas com esse nome latino e rebuscado, cheio de consoantes tensas, ele já nasce com aura de vilão.
O Ixodes é eficiente, o que é mais do que posso dizer de muitos humanos que conheço. Transmite duas doenças: uma que mata, outra que não mata mas deixa o sujeito pedindo para morrer — o que, convenhamos, é um feito para algo do tamanho de uma lentilha subdesenvolvida.
A primeira é a meningoencefalite do carrapato, contra a qual há vacina — infelizmente, não para os anti-vaxxers; ao que parece, ainda não existe cura para a ignorância contumaz. A segunda é a doença de Lyme: se não tratada rapidamente com antibióticos, pode causar sequelas no sistema nervoso, no coração e nas articulações, transformando a excursão romântica pela natureza numa lembrança amarga acompanhada de exames de sangue e sintomas recorrentes.
Na Eslovênia, a temporada do Ixodes começa quando o frio dá uma folga e os humanos acham que podem sair ao ar livre. A inocência do povo é algo comovente. Basta um raio de sol atravessar a janela, e lá estão eles (lá estamos nós): famílias inteiras, mochilas, sanduíches, tênis de trilha, garrafinhas d’água, crianças animadas, cachorros rodopiando. O país inteiro se dirige aos bosques como se a natureza estivesse sempre à espera de visitantes, personificada em uma tia simpática com bandeja de biscoitos amanteigados.
Eu mesmo já fui fisgado por essa armadilha. Desde que me mudei para cá, entusiasmado com a promessa eslovena de que tudo é perto, bonito e acessível, faço minhas caminhadas mata adentro. Não raras vezes, imagino carrapatos à espreita, de binóculo, prontos para dar o bote.
Os eslovenos têm um ritual pré e um pós-trilha. Tudo começa com um banho de repelente e termina com uma checagem corporal minuciosa. Não é um exame médico. É simplesmente a inspeção de cada centímetro da pele. Família inteira se revira. Pais checando filhos, filhos checando pais, casais checando um ao outro com um grau de intimidade que deveria ser reservado a situações mais confidenciais. Mas é normal. Cultural. Civilizatório. E necessário.
No reino do Ixodes, a modéstia não tem vez: ou você se examina, ou vira estatística.
O curioso é que todo esloveno tem uma história pessoal com carrapatos. Sempre começa igual: “Um dia, quando eu era pequeno…”. E termina com um avô heroico removendo o bicho com uma técnica passada de geração em geração, por vezes misturando uma pinça com alguma fé inabalável em saberes tradicionais.
O que me espanta é que, em um país onde nada de realmente perigoso acontece — não há chacinas, não há assaltos cinematográficos, não há animais gigantes posando de feras, não há políticos fazendo barbaridades públicas suficientes para traumatizar a população — o maior vilão acabe sendo um aracnídeo minúsculo. É quase poético. A Eslovênia é tão pacífica que precisou importar o perigo do mundo microscópico.
E é aí que começa meu dilema existencial. Porque eu, como estrangeiro, me vejo obrigado a escolher de quais medos quero participar. O medo local é o carrapato. O medo de quem vem de fora é: “Será que estou exagerando?”. Porque é difícil entrar num pânico que não é seu. É um pânico adquirido, como aprender a gostar de beterraba. Exige processo.
Mas há algo genuíno nesse medo: ele vem da natureza. E a natureza, mesmo quando linda, tem esse hábito irritante de lembrar que não gosta tanto assim da humanidade. A Eslovênia parece uma coleção de fotografias tirada de um catálogo de agência de viagens — lagos azuis, montanhas organizadas, florestas alinhadas como se as árvores tivessem ido juntas ao cabeleireiro. Mas basta duas horas de trilha para perceber que há ali um pacto silencioso: “Você pode entrar, mas eu posso picar sua pele”.
No começo, confesso, tinha mais medo. Cheguei a adquirir doenças psicológicas depois de alguma trilha, a imaginar que morreria em poucos dias e precisaria ser sepultado com honras florestais no meio de um bosque montanhoso. Com o tempo, percebi que os cidadãos locais têm uma vantagem biológica sobre mim: eles simplesmente aceitam. Sabem que o carrapato está lá, incontornável e inexorável como o imposto de renda: não dá para fugir, apenas conviver.
Mas eu me rebaixo ao ridículo com facilidade. Ao menor estalar de galho, já estou imaginando o Ixodes pronto, dentes afiados, com uma bússola na mão, um mapa topográfico na outra e uma determinação digna de maratonista.
Mesmo assim, os eslovenos continuam indo para a floresta. E eu também. Isso dá a dimensão real do carrapato: ele assusta, mas não impede. O medo existe, mas não manda. Ele só acompanha — como uma música de fundo um pouco desafinada.
Aí está a grande lição: o perigo, às vezes, é pequeno, insistente e inevitável. Pode morar em 4 milímetros e ainda assim mudar sua rotina. Mas isso não significa que você deva parar de caminhar.
Seguirei indo para a mata. Com cuidado, claro. Calças longas, repelente que me dá cheiro de camarão temperado e uma dignidade que foge ao primeiro calafrio provocado pela lembrança do bicho.
Aos poucos, vou entendendo. Talvez seja isso que define viver num lugar tranquilo: o maior monstro tem oito patas, não ladra, não morde e cabe na unha do polegar. E ainda assim põe todo mundo para dançar conforme a música.
O perigo pode ser pequeno. Mas, aqui, é ele que controla o jogo.
E, se der bobeira, faz mais estrago do que o Ixódes Silva nos minutos finais da prorrogação.
