Há quem veja “Tróia” como um colosso de músculos à beira-mar, embalado por batalhas grandiosas e egos maiores ainda. Eu, particularmente, prefiro enxergá-lo como um daqueles encontros improváveis entre Hollywood e o desejo eterno de domesticar o mito. Os gregos lançaram navios; os estúdios lançaram dólares. Em ambos os casos, o objetivo foi o mesmo: conquistar o imaginário alheio com uma boa dose de brilho e ilusão. E, sejamos sinceros, o cinema norte-americano adora se sentir dono da Antiguidade, nem que para isso precise substituir deuses por closes dramáticos de galãs oleosos.
O filme dirigido por Wolfgang Petersen se aventura por um dos pilares fundadores do Ocidente: a guerra como espetáculo. “Tróia” transforma um conflito que nasceu da disputa por uma mulher em um enorme laboratório de testosterona, onde cada golpe de espada parece uma campanha de marketing para vender heroísmo. Aquiles, interpretado por Brad Pitt como um semideus sem a parte “semi”, é a pura encarnação desse desejo de glória a qualquer custo. Ele corre, mata, brilha e duvida, mas duvida só o suficiente para parecer profundo na medida exata para o público da década de 2000.
Já Paris, vivido por Orlando Bloom, surge como o tipo de figura que faria Afrodite repensar interesses amorosos: hesitante, sensível, mas com um talento quase filosófico para fazer escolhas que arrastam cidades inteiras para o abismo. Helena, a tal que valeria uma guerra inteira, ganha certa frieza de porcelana que não convence nem os deuses que a história resolveu dispensar. Hollywood parece ter concluído que a beleza dispensa personalidade. É um raciocínio preguiçoso, mas compatível com seus padrões de urgência narrativa.
A ausência dos deuses, aliás, é o ponto em que “Tróia” declara sua própria ideologia. Ao silenciar as interferências divinas do texto de Homero, o filme assume que a tragédia humana basta por si mesma. Nada de Zeus decidindo destinos, nada de Atena inclinando lanças: aqui a violência é responsabilidade inteiramente nossa. É quase uma declaração política: mortais cometem atrocidades não porque o Olimpo os manipula, mas porque o poder seduz, e porque o amor, quando vira propriedade privada, se transforma numa pólvora medieval.
É curioso notar que, enquanto rejeita o misticismo, o filme investe com fervor em outra religião: a do espetáculo. Cenários monumentais, embarcações que parecem recém-saídas de uma maratona de Photoshop e figurinos que beiram o fetiche histórico compõem uma narrativa de bravura higienizada, onde a poeira da guerra foi cuidadosamente lavada para caber em salas climatizadas. Tudo é grandioso, mas pouco sangra. Tudo é intenso, mas raramente fere.
Ainda assim, há lampejos de lucidez que escapam pelas armaduras reluzentes. Quando Heitor questiona a validade de batalhas motivadas por orgulhos alheios, o filme insinua o que realmente interessa: a força de um herói não se mede pela habilidade de matar, mas pela capacidade de defender quem não pediu para estar ali. Porém, essas fagulhas filosóficas desaparecem tão rapidamente quanto surgem, como se o roteiro tivesse medo de pensar demais.
“Tróia” brinca com a história para reforçar um mito que continua extremamente contemporâneo: o culto ao vencedor. As cidades queimam, os corpos caem, os nomes são celebrados em hinos que ninguém pergunta quem escreveu. E o cinema, essa fábrica de imortalidade laica, oferece sua bênção final: quem mata mais ganha close.
Que os puristas reclamem o quanto quiserem. “Tróia” não é Homero, e agradecemos. A beleza do mito está justamente na reincarnação constante: cada época inventa seus próprios heróis para justificar seus próprios conflitos. Nós talvez não tenhamos deuses soprando destinos, mas temos câmeras, publicidade e um desejo insistente de tornar épico até aquilo que merecia terapia.
Hollywood, no fundo, parece ter aprendido mais com os gregos do que gosta de admitir: conquistas grandiosas exigem histórias grandiosas, ainda que distorcidas. E enquanto houver quem se sinta provocado pela eterna pergunta, quem decide o valor de uma vida?, “Tróia” continuará fazendo aquilo que sempre quis: incendiar a consciência, ainda que sob o disfarce de entretenimento importado da Antiguidade.
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