Uma adolescente britânica do início do século 19 mudaria a literatura mundial, revolucionaria o jeito de se contar uma história criando algo absolutamente novo e, de quebra, chegaria ao topo, glorificada por transcender sua própria vida e inspirar milhões de outras meninas mundo afora. Sua criação, a releitura de um clássico da mitologia grega, delirante, perturbador, filosoficamente refinado, transpassa a humana fragilidade, mas surpreende ao discorrer sobre as metamorfoses que o homem, o mais irrequieto dos animais, não cansa de pretender para sua vida, para a vida de quem o rodeia, chegando às portas da blasfêmia e da loucura ao emular poderes exclusivamente divinos, ansiando formar uma outra sociedade, gerar o novo homem. Em “Frankenstein”, Mary Shelley (1797-1851) urde um sonho tresloucado, falsa ideia de interesse coletivo, mas que é a compensação solitária de vaidades muito íntimas, de mágoas bastante profundas. Questionando imagens cristalizadas no inconsciente de toda uma geração, cercada pelo passado que resiste em ceder lugar ao futuro, corporificado por máquinas que aludem a uma nova era e novos desafios ao mesmo tempo em que abre espaço para avaliar sua importância, Guillermo Del Toro segue as pegadas de Shelley em sua versão para um dos maiores clássicos da literatura universal. Também para Del Toro, o monstro de Shelley — justamente denominado de “O Prometeu Moderno”, referência ao personagem da mitologia grega que rouba o fogo, a representação por natureza da técnica e da sabedoria, e é castigado a viver eternamente, mas em agonia insuportável — é uma pobre criatura.
Como no filme de Yorgos Lanthimos, a última incursão do cinema pela obra de Shelley, Del Toro mantém o espírito da autora, mas empreende adaptações pontuais. Aqui, primeiramente, o diretor-roteirista leva “Frankenstein” para 1857, transcorridos seis anos da morte de Shelley,e o enredo alude àconclusão do romance, no Ártico. O monstro e seu criador estão prestes a acertar suas contasnum navio encalhado numa geleira, não sem antes espalharem destruição e morte entre os tripulantes. Victor Frankenstein tenta explicar ao capitão quem é (ou o que é) aquela figura alta, sombria, decrépita, e vai relembrando como foi que ela tomou forma. O médicoretrocede à infância, quando o pai o obrigava a participar de aulas de anatomia e o castigava com vergastadas no rosto sempre que não sabia responder uma pergunta. Os cenários desenvolvidos por Tamara Deverell para esse flashback, sobretudo a casa-laboratório do doutor Victor e as ruas da Londres vitoriana, são obviamente inspirados nas ambientações do filme de Lanthimos, e a fotografia de Dan Laustsen faz bom uso dos tons azulados e rubros vistos em “O Labirinto do Fauno” (2006) e “A Forma da Água” (2017). Como se vê, referências não faltam, e nota-se também a influência do James Whale (1889-1957) de “A Noiva de Frankenstein” (1935), e de “O Jovem Frankenstein” (1974), com Mel Brooks em pleno fulgor de sua tresloucada criatividade. Mas o Frankenstein toriano tem uma cara para chamar de só sua.
Muito da substância dramática do longa deve-se a Jacob Elordi, seguido de perto por Oscar Isaac. A parceria dos atores determina cada desdobramento de “Frankenstein”, e as ótimas surpresas são uma marca desta nova leitura. Cada vez mais empenhado em ver-se livre do rótulo de galã, Elordi descobre ângulos até então ocultos em seu personagem, sem a menor dúvida um dos tipos mais complexos já criados, e convence na pele da aberração que clama por misericórdia e desperta ojeriza, aprisionado num corpo e numa existência artificiais. Isaac, por seu turno, é irretocável em sua opção por sublinhar a loucura de Victor, mas igualmente perfeito quando insiste na pretensão do anti-herói de sobrepujar a vontade divina. Epítome genial do que foi a vida mesma de Mary Shelley, sempre a combater titãs como o pai, o jornalista e escritor William Godwin (1756-1836), continua um símbolo da busca por lugar num mundo mais e mais desumanizado, repleto de seres cuja anomalia não está na carne.
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