Bresson traduz Dostoiévski para a era do vazio existencial — e a MUBI resgata essa joia Divulgação / Victoria Film

Bresson traduz Dostoiévski para a era do vazio existencial — e a MUBI resgata essa joia

Inspirado em “Noites Brancas”, de Fiódor Dostoiévski, “Quatro Noites de Um Sonhador”, de 1971, dirigido por Robert Bresson, desloca o espaço e o tempo da história para uma Paris contemporânea. O tom narrativo abandona o sentimentalismo da obra literária e se aproxima de uma anatomia do desejo e da frustração. Ao assistir ao filme, fica a impressão de que a obra de Bresson é quase experimental e “caseira”, construída sobre uma produção enxuta.

É evidente que os atores não são profissionais. Há poucos personagens, como na história original, e o maior trunfo do longa é justamente sua autoralidade. Bresson optou por manter o orçamento baixo para garantir liberdade criativa. Altos investimentos implicam exigências, cortes, concessões. O diretor, porém, quis se afastar do espetáculo hollywoodiano, do verniz industrial das grandes produções. “Quatro Noites de Um Sonhador” é quase uma negação do cinema convencional: um não-filme, no sentido de rejeitar a atuação teatralizada. Os intérpretes apenas dizem suas falas, quase sem emoção, porque Bresson buscava neutralidade absoluta. Ele quer contar uma história sem ornamentos, com naturalidade e contenção.

Nos papéis principais, Bresson escalou Isabelle Weingarten como Marthe e Guillaume des Forêts como Jacques. Os dois se conhecem quando o solitário Jacques impede Marthe de saltar de uma ponte. Na primeira noite, ele narra sua vida. Conhecemos um pintor que vagueia por Paris em busca de um amor, seguindo mulheres desconhecidas e esperando que algo extraordinário o arranque do tédio cotidiano. Na segunda noite, Marthe revela estar apaixonada por um antigo inquilino de sua mãe, um relacionamento curto e intenso, interrompido pelo desaparecimento repentino do homem.

Na terceira noite, eles se aproximam. Jacques se declara e propõe casamento. Marthe parece grata e, por instantes, inclinada a aceitar, alimentando a esperança do pintor de que ambos possam se salvar de suas dores afetivas. Na quarta, ela retorna com notícias do amado que desaparecera e precisa decidir se partirá com ele ou se ficará com Jacques.

Com atuações contidas, quase lacônicas, uma das maiores qualidades do filme é a fotografia, que cria textura nas cores e usa enquadramentos que reforçam o tom lírico da obra, transformando as noites parisienses, os reflexos do Sena e a própria arquitetura da cidade em algo quase musical. A trilha sonora de Michel Magne incorpora bossa nova e sons ambientes que acentuam a melancolia da narrativa.

Discreto e intimista, o longa é um dos títulos menos comentados da filmografia de Bresson, embora tenha passado por festivais e recebido prêmios, como em Berlim. Recentemente restaurado, voltou a ser exibido no Cannes Classics, reacendendo o interesse por essa fase menos celebrada do diretor. Apesar de ambientado nos anos 1970, o enredo ainda dialoga com nossa geração atual ao tratar da dificuldade de criar vínculos, manter relações sólidas e aceitar a vulnerabilidade emocional diante do outro.

Filme: Quatro Noites de Um Sonhador
Diretor: Robert Bresson
Ano: 1971
Gênero: Drama/Romance
Avaliação: 8/10 1 1
★★★★★★★★★★
Fer Kalaoun

Fer Kalaoun é editora na Revista Bula e repórter especializada em jornalismo cultural, audiovisual e político desde 2014. Estudante de História no Instituto Federal de Goiás (IFG), traz uma perspectiva crítica e contextualizada aos seus textos. Já passou por grandes veículos de comunicação de Goiás, incluindo Rádio CBN, Jornal O Popular, Jornal Opção e Rádio Sagres, onde apresentou o quadro Cinemateca Sagres.