O retrato mais perturbador da solidão que o cinema já produziu em clássico de Scorsese na Netflix Divulgação / Columbia Pictures

O retrato mais perturbador da solidão que o cinema já produziu em clássico de Scorsese na Netflix

Há personagens que funcionam como um espelho desconfortável. Eles expõem a fragilidade daquilo que chamamos de civilização e lembram que o verniz social é fino demais para conter a violência silenciosa que cada esquina esconde. Travis Bickle não é um psicopata que aparece de repente. Ele é o produto de uma cidade que finge normalidade enquanto apodrece nas margens. Em “Taxi Driver”, Martin Scorsese conduz essa descida ao subsolo humano com uma frieza que dispensa qualquer tentativa de simpatia. Desde o começo, o filme se nega a suavizar sua verdade: o caos urbano não é um colapso iminente. Ele já está consumado.

Há quem interprete Travis como um veterano que perdeu o rumo. Mas a leitura mais dura e, por isso, mais honesta, é que sua guerra nunca terminou. O Vietnã apenas mudou de cenário. O inimigo agora é difuso, espalhado pela noite de néon, pelos becos onde a miséria e a exploração são negócios permanentes. A cidade não lhe oferece repouso, e o táxi funciona como uma trincheira em movimento. Robert De Niro constrói o personagem a partir de uma solidão que não pede piedade. Seu isolamento é quase clínico. Há uma lógica interna em tudo que pensa, embora seja uma lógica que ignora qualquer forma de empatia.

O encontro com Betsy evidencia essa dissonância. Ele se aproxima com a convicção de que está fazendo o certo. Ela, interpretada por Cybill Shepherd, parece flertar com uma possibilidade de vida comum. Mas a comunicação é impossível. Travis não compreende o código que sustenta os vínculos afetivos. Quando o convite para um cinema adulto fracassa, não se trata de ingenuidade romântica. É o sintoma de um sujeito incapaz de entender como se constrói intimidade. Sua tentativa de contato é uma intrusão agressiva. Ele quer algo que não sabe nomear e, ao não conseguir alcançá-lo, cria a narrativa de que o mundo inteiro está contaminado.

O filme não se preocupa em explicar a transformação que acontece a seguir. Não há epifania. O gesto de raspar a cabeça e comprar armas é apenas o passo seguinte de uma lógica que já estava ali. Paul Schrader escreve Travis como alguém que não evolui. Ele apenas se revela. Quando surge Iris, a jovem prostituta vivida por Jodie Foster, Bickle decide desempenhar um papel que acredita ser heroico. A violência passa a ser sua forma de redenção e também a forma de punir aquilo que ele considera decadência. Não existe altruísmo nessa cruzada. Existe puro ressentimento. Ao tentar salvar Iris, ele busca salvar a si mesmo de um vazio que não sabe suportar.

O desfecho é abrupto porque a violência, na realidade, é sempre assim. Não há catarse para o espectador. O massacre que ele executa retorna como glória pública, e isso amplia ainda mais o desconforto. A sociedade se contenta com narrativas fáceis. Um homem que mata criminosos pode ser celebrado como herói, mesmo que seu desequilíbrio seja evidente. Há uma ironia cruel em sua absolvição. Não se trata de um final esperançoso. É um alerta. Travis continuará no mundo, circulando pelas ruas como um elemento prestes a explodir novamente.

“Taxi Driver” permanece atual porque sua tese não envelhece. A violência que nasce da solidão não é exceção. Ela se infiltra em sistemas que ignoram os desamparados até que se tornem uma ameaça incontornável. O filme deixa isso claro sem recorrer a explicações didáticas. Ao final, não se tem a sensação de conclusão. Há apenas a consciência amarga de que nada foi resolvido. Travis não mudou. O mundo também não. O táxi segue rodando e a cidade permanece em colapso. A única diferença é que agora todos fingem que não veem.

Filme: Taxi Driver
Diretor: Martin Scorsese
Ano: 1976
Gênero: Crime/Drama
Avaliação: 10/10 1 1
★★★★★★★★★★
Fernando Machado

Fernando Machado é jornalista e cinéfilo, com atuação voltada para conteúdo otimizado, Google Discover, SEO técnico e performance editorial. Na Cantuária Sites, integra a frente de projetos que cruzam linguagem de alta qualidade com alcance orgânico real.