O filme de Noah Baumbach na Netflix que vai conversar com suas feridas familiares Atsushi Nishijima / Netflix

O filme de Noah Baumbach na Netflix que vai conversar com suas feridas familiares

O caos doméstico tem uma estranha habilidade de se disfarçar de afeto. Às vezes, ele usa a forma de esculturas pretensamente geniais; noutras, veste o terno de um pai que jurou ter feito o melhor que pôde, especialmente quando não fez. Em “Os Meyerowitz — Família Não Se Escolhe”, Noah Baumbach nos convida a visitar um clã que domina essa arte com talento quase hereditário: o de amar com cotovelos, pedir atenção esfregando mágoas e sobreviver ao legado emocional de um patriarca que jamais entendeu a diferença entre orgulho e acolhimento.

Harold Meyerowitz, vivido com precisão irritante por Dustin Hoffman, acredita ser uma figura maior do que o mundo lhe reconhece. Escultor, professor, gênio incompreendido — ou assim gosta de se ver. Seus filhos orbitam esse sol decadente: Danny, interpretado por Adam Sandler em sua melhor chave dramática, e Matt, o irmão bem-sucedido interpretado por Ben Stiller, que tenta equilibrar o desejo de aprovação com o cansaço de sempre vencer por W.O. Ao fundo, como um eco que lembra que as famílias raramente se resumem a quem fala mais alto, está Jean, a irmã que engoliu sua própria história para não atrapalhar a galeria de ressentimentos masculinos.

A Manhattan que eles habitam não é a da fantasia turística nem a da boemia romântica: é o cenário ideal para neuroses hereditárias que se alimentam de referências intelectuais enquanto implodem lentamente. Baumbach constrói cada diálogo como se estivesse esculpindo pequenas fissuras, nada explode de imediato, mas tudo responde a pressões acumuladas por décadas de silêncios, tapas afetivos e comparações que ferem mais do que qualquer sinceridade brutal.

Sandler, livre da obrigação de fazer rir, expõe a fragilidade do filho que nunca recebeu um aplauso inteiro. Seu Danny nos faz pensar no que resta de alguém quando a vida profissional nunca compensou o abandono emocional. Stiller, por sua vez, extrai humor da tragédia de ser o filho “vencedor” que coleciona vitórias sem sentir que alguma delas realmente lhe pertence. Quando esses irmãos trombam, não é apenas sobre quem realizou mais, é sobre quem doeu mais em silêncio.

A comédia existe, claro, mas chega como aquele gole de vinho servido no velório: para que as lágrimas não transbordem todas de uma vez. Baumbach tem essa elegância: rir de nós mesmos enquanto percebemos que o riso não desfaz as marcas, apenas torna suportável reconhecê-las. Até nas cenas de hospital, onde a família tenta negociar com a fragilidade do patriarca o que nunca conseguiu em vida, afeto verdadeiro, talvez até um “desculpa”, o humor permanece, cúmplice e cruel.

O filme se revela especialmente perspicaz ao discutir narcisismo como herança genética e cultural. Harold é exaustivo porque o narcisismo é exaustivo: não há espaço para os sentimentos dos outros quando um único ego exige o palco inteiro. Baumbach não denuncia com dedo em riste, apenas acende a luz na sala e nos deixa observar o incômodo. Quem reconhece essa dinâmica na própria história sente um arrepio imediato; quem não reconhece provavelmente está mais próximo de Harold do que imagina.

“Os Meyerowitz — Família Não Se Escolhe” é sobre o que sobra quando a admiração se mistura com raiva, quando o amor chega sempre com atraso e quando a família se torna ao mesmo tempo abrigo e ferida aberta. É um lembrete ácido de que pedir perdão não é um gesto grandioso: é um pequeno milagre que muita gente nunca aprendeu a conceder. Baumbach brinca com a ideia de reconciliação, mas a trata como ela realmente é: um processo frágil, às vezes ridiculamente tímido, quase sempre tardio.

Saí desse encontro com a sensação de que Harold continuará convencido de sua genialidade, e seus filhos seguirão tentando sobreviver ao terremoto emocional que ele provocou. Há quem diga que isso é triste. Eu, por outro lado, acho profundamente humano. Afinal, se família fosse fácil, não seria família.

Filme: Os Meyerowitz — Família Não Se Escolhe
Diretor: Noah Baumbach
Ano: 2017
Gênero: Comédia/Drama
Avaliação: 9/10 1 1
★★★★★★★★★