O crime que o mundo esqueceu — até a Netflix contar a história Divulgação / Netflix

O crime que o mundo esqueceu — até a Netflix contar a história

De quando em quando, fatos históricos tornam-se alvo do escrutínio público de pesquisadores e artistas depois que vêm a lume dúvidas até então relegadas ao silêncio quase eterno do passado. Escrita por mãos humanas — e, portanto, sujeita a paixões, medos e conveniências —, a História vai apresentando seus caprichos, desafiando os métodos e incutindo reflexões nos homens de boa vontade. Esse movimento embalou James Abram Garfield (1831-1881), um advogado de Moreland Hills, Ohio, no nordeste dos Estados Unidos, e fez dele o vigésimo presidente americano, malgrado a lógica e as muitas objeções do destino. Os quatro episódios de “Como um Relâmpago” voltam a um capítulo obscuro da política de uma nação erguida sobre a inabalável crença nos desígnios do povo e no ressentimento atroz que ela inspira naqueles que sabem não participar da festa. Baseado em “Destiny of the Republic: A Tale of Madness, Medicine and the Murder of a President” (“destino da República: uma história de loucura, medicina e o assassinato de um presidente”, em tradução literal; 2011), de Candice Millard, Mike Makowsky refresca a memória de alguns e provoca outros tantos, trazendo análises despretensiosas e certeiras sobre democracia, poder, glória e, adivinhem, polarização ideológica. 

Antes que uma Buldogue britânica, calibre .44 de ação dupla defina a sorte de Garfield, Makowsky ilumina seus momentos felizes, ao lado da esposa, Lucretia, e dos sete filhos. Contrariando os pedidos de Lucretia, aliás, Garfield envolve-se na política formal, filia-se ao Partido Republicano e passa a frequentar as reuniões da legenda, sem nenhuma pretensão eleitoral — até porque não tinha exatamente o perfil ideal de candidato. Marido amoroso e pai de família atento, Garfield não queria deixar Ohio, mas foi deixando-se seduzir pela chance de fazer a diferença nos rumos de um país fragmentado, ainda por se recuperar de uma cruenta guerra civil. A direção de Matt Ross esmiúça a vida doméstica do protagonista, mormente nos 52 minutos do primeiro episódio, mas reserva um bom tempo para situar Garfield como um homem zeloso de seus deveres cívicos, acompanhando a Convenção Nacional Republicana. Equilibrando-se entre o didatismo e o apuro estético, Ross compõe um retrato fiel da ascensão de Garfield, que desbanca rivais experientes (e ímpios) e torna-se o indicado dos republicanos para disputar a presidência em 1880. Em 4 de março de 1881, ele derrota o democrata Winfield Scott Hancock (1824-1886) por uma pequena margem, mas as dificuldades estavam só começando. E um inimigo sorrateiro o perseguia.

Sem ocupação certa, dependendo dos favores da irmã e do cunhado, Charles Julius Guiteau (1841-1882), não se dá por vencido enquanto não consegue uma audiência com o agora presidente Garfield, e seu fracasso como lobista e bajulador alimenta uma fúria e um rancor que levam-no ao desatino irremediável. Percebe-se uma distribuição quase cartesiana da narrativa entre Michael Shannon e Matthew Macfadyen, e é duro cravar quem sobressai. Passadas duas décadas, Shannon tem uma oportunidade à altura do talento demonstrado em “Foi Apenas um Sonho” (2008), de Sam Mendes, ao passo que Macfadyen rouba a cena algumas vezes com os rompantes de pueril megalomania de Guiteau, um sujeito em óbvio sofrimento psíquico que não desperta o interesse ou a pena de ninguém. O calvário do presidente após o atentado — Garfield só foi  morrer dois meses mais tarde, em 19 de setembro de 1881, de sepse — é, como rigorosamente tudo aqui, uma prova de que, repetindo Marx, a marcha da humanidade e os personagens que tomam-lhe a frente repetem-se, como tragédia ou como farsa. Além de Garfield, outros quatro presidentes americanos encontraram a morte em circunstâncias violentas. E isso não é fruto da árvore do acaso.


Série: Como um Relâmpago
Criação: Mike Makowsky
Direção: Matt Ross
Ano: 2025
Gêneros: Drama, biografia 
Nota: 9/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.