Tarantino no auge: um dos filmes mais influentes das últimas décadas está de volta à Netflix Divulgação / Miramax

Tarantino no auge: um dos filmes mais influentes das últimas décadas está de volta à Netflix

A vingança em “Kill Bill — Volume 1” é o impulso que move e define a narrativa. Quentin Tarantino constrói um épico de ação dividido em capítulos, no qual cada cena assume valor próprio dentro da trajetória de uma mulher que busca eliminar os responsáveis pela destruição de sua vida. Uma Thurman interpreta A Noiva, assassina deixada para morrer que desperta do coma com um único objetivo: encontrar e executar cada integrante do Esquadrão Assassino de Víboras Mortais. O plano é linear, mas o percurso é fragmentado e violento, marcado por saltos que conectam causa e efeito em um ciclo de retribuição.

O prólogo em preto e branco apresenta o crime que inaugura a fúria. A passagem seguinte, dentro de uma casa comum, coloca o público diante de uma luta física sem preparação prévia. Tarantino alterna pausas e explosões para manter o olhar fixo nos corpos, não nas palavras. A fotografia seca e a montagem alternada impõem um ritmo que espelha o estado mental da protagonista: concentração absoluta, sem espaço para desvio. Cada duelo modifica o objetivo seguinte, pois cada vitória revela novas fragilidades e inimigos.

O elenco sustenta o equilíbrio entre ironia e seriedade. Uma Thurman compõe A Noiva com gestos precisos e olhar que antecipa a violência. Lucy Liu, como O-Ren Ishii, impõe respeito pelo contraste entre calma e crueldade. Vivica A. Fox traz a urgência da luta doméstica. Daryl Hannah assume o cinismo letal de Elle Driver, cuja entrada em cena é marcada por um assobio que cria instantaneamente tensão. David Carradine, ausente na maioria das cenas, domina o filme com a voz que define o alvo e o destino. Cada presença altera o rumo do enredo, servindo de ponte entre passado e presente.

A inclusão da passagem em animação, produzida pelo estúdio japonês Production I.G., muda o registro visual e amplia o alcance da narrativa. O relato da infância de O-Ren Ishii em desenho é uma escolha que desloca o realismo, transformando lembrança em mito. Essa quebra reforça o contraste entre tradição e vingança, entre a disciplina e a brutalidade que movem todos os personagens. A mudança de textura também cumpre função temporal: ao converter o trauma em animação, o diretor preserva a emoção e aumenta a distância necessária para que o público continue acompanhando a violência sem repulsa.

O som guia o tempo. A trilha sonora reúne estilos que saltam de Nancy Sinatra a Tomoyasu Hotei, e cada corte musical redefine a velocidade da narrativa. O silêncio tem peso igual: antes de cada golpe, o ar parece suspenso, e o gesto seguinte assume o papel de fala. Tarantino transforma o uso da trilha em elemento dramático, onde cada música dita o humor do momento e traduz o que não se diz. A música não ilustra; ela conduz.

A estética visual do filme é construída como mosaico. O preto e branco, o uso de filtros, o recurso do split screen e a saturação das cores não servem a exibicionismo técnico, mas à ideia de que a história é um quebra-cabeça contado pelo corpo e pela memória da protagonista. O figurino de Uma Thurman, o macacão amarelo inspirado em Bruce Lee, reafirma essa lógica: o traje é citação e também armadura. Ao mesmo tempo, o enquadramento dá espaço às ações, respeitando a legibilidade das lutas e permitindo que o espectador acompanhe o raciocínio físico de cada personagem.

O duelo entre A Noiva e O-Ren Ishii funciona como ponto de inflexão. O cenário coberto de neve, o som dos sinos e o contraste entre branco e vermelho criam um ritual visual. A pausa antes do primeiro golpe concentra toda a tensão anterior. Tarantino faz o tempo se alongar até que o movimento se torne inevitável. A luta finaliza um ciclo e abre outro, sem anunciar o que virá. A violência é literal, mas também expressiva: o sangue derramado marca a passagem de uma etapa da vingança para outra.

O humor aparece nas pausas e nas incongruências. Um comentário rápido, um corte brusco, um gesto que revela exaustão funcionam como respiro entre blocos de ação. Essa leveza não diminui o peso da narrativa; serve apenas para calibrar a percepção do espectador e evitar a saturação. A combinação entre humor seco e brutalidade faz parte do estilo do diretor, que usa a contradição como ferramenta de ritmo.

“Kill Bill — Volume 1” mantém a coerência entre forma e conteúdo. O roteiro, a montagem e a fotografia trabalham em sincronia para construir uma sensação de fluxo contínuo, mesmo com a fragmentação do tempo. Tarantino confia na memória visual do público para unir as peças, e o resultado é uma história que avança por acúmulo de gestos. A Noiva caminha em linha reta, mas a jornada é feita de desvios e interrupções que ampliam a dimensão do personagem.

Como primeiro volume, o filme cumpre o papel de fundar o mito e deixar o campo preparado para o acerto de contas seguinte. A sequência promete mais do que entrega, mas a intenção é clara: prolongar a espera e manter o espectador em estado de atenção. “Kill Bill — Volume 1” encerra seu capítulo com a protagonista no controle da própria narrativa, cercada de silêncio e sangue. A lâmina repousa por ora, e a neve sobre o jardim reflete o silêncio da pausa.

Filme: Kill Bill — Volume 1
Diretor: Quentin Tarantino
Ano: 2003
Gênero: Ação/Crime/Thriller
Avaliação: 10/10 1 1
★★★★★★★★★★