Há filmes que não inventam nada, mas revelam muito sobre o tempo em que foram feitos. “Paranoia”, de D.J. Caruso, é um desses casos. A premissa é simples, quase arquetípica: um jovem isolado dentro de casa passa a desconfiar que seu vizinho é um assassino. O que poderia ser apenas uma reinterpretação adolescente de “Janela Indiscreta” torna-se, nas mãos de Caruso, uma parábola sobre o tédio, a vigilância e o desejo de controle. No fundo, o que o filme observa não é um crime, mas a própria pulsão contemporânea de transformar o outro em espetáculo, e o olhar, em forma de poder.
A trama se desenvolve com eficiência clássica. O vizinho enigmático, interpretado por David Morse, encarna a figura do perigo latente, não apenas o assassino possível, mas o adulto que escapa à decifração. Sua presença inquieta porque evoca uma ameaça arcaica: a do desconhecido que vive ao lado, e que o cotidiano insiste em domesticar. Em contraponto, Sarah Roemer surge como Ashley, a vizinha idealizada, cuja função narrativa é tanto romântica quanto moral: ela representa o olhar que devolve ao protagonista a sensação de realidade, em meio ao delírio da suspeita.
Há uma ironia subjacente na forma como Caruso manipula o suspense: o que deveria ser uma investigação racional se transforma em histeria coletiva. O isolamento de Kale não é apenas físico, mas cognitivo. Ele constrói uma verdade a partir de fragmentos, de câmeras e ruídos, e o espectador acompanha sua deriva paranoica como quem percorre o labirinto mental de uma geração conectada, mas solitária. O filme não se interessa pela psicologia profunda dos personagens, prefere o ritmo, a tensão, a mecânica da suspeita. Ainda assim, há uma coerência temática que o sustenta: a curiosidade humana como forma de medo.
Shia LaBeouf interpreta Kale Brecht, um adolescente marcado pela morte do pai e punido com prisão domiciliar após um ato impulsivo. Sua punição é simbólica: ele não apenas perde a liberdade física, mas é lançado num território em que o olhar é sua única arma. A câmera, os binóculos e o computador tornam-se extensões de uma curiosidade doentia. Essa vigilância amadora, travestida de passatempo, é o reflexo de uma sociedade acostumada a espiar e ser espiada. Caruso transforma a casa em uma prisão transparente, um microcosmo da era digital, em que todos observam e são observados, acreditando exercer controle enquanto são controlados.
A direção de Caruso é segura e consciente do material que tem em mãos. Ele não busca originalidade, e talvez seja essa a sua virtude. Ao tratar um tema já exaurido pelo cinema, ele compreende que o interesse não está na revelação final, mas no percurso do olhar. A tensão não nasce do mistério, e sim da incapacidade de distinguir o real do imaginado. Quando a verdade vem à tona, ela já não importa tanto, o que persiste é a sensação de que toda tentativa de compreender o outro termina em projeção.
A ausência de violência gráfica é uma escolha que reforça essa proposta. Caruso prefere o desconforto ao choque, e isso o aproxima mais de Hitchcock do que de seus imitadores contemporâneos. Paranoia é um filme sobre o olhar e sua falência: sobre o quanto enxergar não é o mesmo que compreender. LaBeouf sustenta o papel com naturalidade, sem grandes nuances, mas com energia suficiente para manter a empatia do espectador. Morse, por sua vez, constrói um vilão silencioso, quase arquetípico, cuja presença basta para desequilibrar a estabilidade do bairro e da própria narrativa.
“Paranoia” não é apenas um thriller juvenil. É um retrato involuntário da cultura do controle e da curiosidade voyeurística que define o início do século 21. Sob o disfarce de entretenimento leve, o filme formula uma questão incômoda: o que fazemos com aquilo que vemos? O olhar que desconfia do outro, quando levado ao limite, revela apenas a própria incapacidade de suportar o acaso. A paranoia, afinal, é a forma moderna da fé, a crença de que tudo tem um sentido, e que o mal, se existir, estará sempre do outro lado da janela.
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