Se alguém ainda acredita que Hollywood abraça revoluções com coragem genuína, “A Mulher Rei” serve como lembrete de que até a história mais pulsante pode ser podada para ficar “consumível”. Há um certo encanto em ver mulheres negras comandando o campo de batalha de um reino que ousou desafiar traficantes de gente; no entanto, o que poderia ser um abalo sísmico no imaginário global torna-se uma rebelião domesticada, algo como um vinho encorpado diluído com água por medo de embriagar demais o público.
A trama se passa no reino de Daomé, onde uma elite de guerreiras, as Agojie, molda o corpo e a mente para a guerra com disciplina quase ritualística. É fascinante perceber ali um contraponto ao desgastado arquétipo hollywoodiano da “mulher forte”, geralmente uma extensão musculosa de fantasias masculinas. Aqui, a força não faz pose: tem cicatrizes, segredos, dilemas morais e fragilidades que não cabem em slogans de camiseta. Só que, quando o roteiro poderia aprofundar os paradoxos que definem um exército que combate o tráfico humano enquanto o próprio reino se beneficia dele… prefere fazer aquele contorcionismo narrativo típico de quem tem medo de lidar com o peso real da história.
Viola Davis, com a ferocidade que lhe é natural, constrói uma líder que não está ali para agradar ninguém, e justamente por isso conquista respeito imediato. Seu olhar carrega tempestades que o filme, ironicamente, tenta conter. Ao lado dela, Lashana Lynch entrega um brilho indomável, enquanto Thuso Mbedu equilibra vulnerabilidade e rebeldia com uma autenticidade que se impõe. As intérpretes criam camadas que não estavam necessariamente no roteiro, quase como se salvassem o filme de sua própria moderação. Quando Hollywood se acovarda, mulheres como elas tomam as rédeas.
O que realmente intriga é observar a batalha estética travada atrás das câmeras. A diretora Gina Prince-Bythewood parece lutar o tempo todo contra uma força invisível que exige suavizar a brutalidade, encurtar as dores, encobrir o sangue. O resultado: coreografias de luta instigantes, mas frequentemente enquadradas por uma câmera nervosa que esconde mais do que revela, uma pena para um enredo que se orgulha da ferocidade feminina. A história de quem enfrentou traficantes não deveria ser enquadrada como se temesse perturbar quem pagou ingresso.
Ainda assim, há momentos de hipnotismo: cantos que ressoam como chamamentos ancestrais, rituais que revelam a força coletiva de um povo que soube transformar violência em identidade e irmandade em escudo político. Quando o filme aposta em cultura em vez de efeitos, algo verdadeiro pulsa. Pena que logo a narrativa corre para o próximo conflito melodramático, inclusive um romance tão deslocado quanto turista tirando selfie em campo de batalha.
Há méritos inegáveis: o elenco entrega grandeza, a ambientação exala vida e a história das Agojie merece ecoar muito além das telas. Mas “A Mulher Rei” é também símbolo de uma contradição que me provoca: como celebrar heroínas africanas enquanto se suaviza o contexto histórico que as tornou necessárias? A resposta Hollywood não oferece, e talvez nem queira.
O filme tenta afirmar que a liberdade se conquista com coragem. Verdade. Mas também se conquista com honestidade. E essa, por vezes, parece cuidadosamente editada na sala de montagem. Ainda assim, é impossível não sair da sessão desejando que as vozes daquelas mulheres ecoem mais alto, talvez num futuro em que não seja preciso pedir licença para contar a história como ela realmente foi.
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