Stephen King sempre escreveu sobre a luta humana contra forças que se alimentam de nossas fragilidades. “Doutor Sono”, em sua versão dirigida por Mike Flanagan, insiste nessa tradição: não há monstros relevantes se eles não confrontarem algo que reconhecemos em nós mesmos. O filme parte do trauma deixado por “O Iluminado” e observa o que acontece quando o medo não encontra cura, apenas espera, silencioso, enquanto a vida exige alguma forma de continuidade. Danny Torrance já não é a criança assombrada pelo isolamento no Overlook Hotel. Agora, adulto e perdido em vícios, tenta administrar o que restou da própria sanidade, e isso já seria um antagonista suficiente, mesmo que o sobrenatural nunca aparecesse.
Ao invés de buscar o horror imediato, Flanagan privilegia o desgaste existencial. Danny não enfrenta apenas espíritos que vagam entre dimensões: enfrenta a herança de um pai destruído pela própria ânsia de reconhecimento, a culpa pelas vidas que não conseguiu salvar e o medo constante de que sua sensibilidade, o “brilho”, seja mais um fardo do que um dom. Essa abordagem confere ao filme uma identidade particular, distanciando-o das expectativas de um terror convencional e aproximando-o de uma narrativa sobre resistência interna.
Incorporar a personagem Abra ao enredo amplia esse conflito. A jovem, igualmente marcada pela percepção do invisível, surge não como promessa de salvação, mas como lembrete incômodo de que o mundo continua exigindo coragem, mesmo daqueles que já acreditaram ter esgotado todas as reservas possíveis. A atuação de Kyliegh Curran oscila entre segurança e estranhamento; porém, essa irregularidade, longe de comprometer o conjunto, reforça a ideia de que o poder não vem sem o risco de desumanização. Há momentos em que ela parece distante demais da própria dor, e isso não enfraquece a narrativa, mas questiona a maturidade precoce imposta a quem enxerga além.
Rose, a antagonista interpretada por Rebecca Ferguson, personifica com elegância a lógica predatória de uma sociedade que extrai vitalidade daqueles que ainda preservam alguma centelha de esperança. Não se trata apenas de vampirizar o brilho alheio, mas de transformar a sensibilidade em mercadoria. Sua presença eleva o filme ao propor que o mal não precisa ser grotesco para ser devastador; basta ser organizado, paciente e convincente.
O retorno ao Overlook não é exercício gratuito de nostalgia. É a confrontação final com tudo que ainda paralisa: memórias que persistem como feridas não cicatrizadas. Flanagan compreende que o passado não retorna como lembrança pacífica, e sim como ameaça de repetição. A escolha de revisitar aquele espaço mítico funciona como síntese narrativa: o horror que não se supera reaparece exigindo resolução. E Danny, ao revisitar o hotel, encontra a oportunidade de finalmente interromper o ciclo que seu pai jamais conseguiu enfrentar.
Há quem argumente que “Doutor Sono” se arrasta em alguns momentos. Talvez porque, diferentemente de tantas adaptações de King, a história aqui não corre atrás de sustos. Ela observa, acompanha, investiga o que resta de alguém que já viu o inimaginável. O ritmo é deliberado, como se o filme pedisse que o espectador reconheça o peso de cada decisão antes que as forças em confronto se revelem de maneira definitiva.
Se “O Iluminado” utilizou o terror para examinar a corrosão de um homem por dentro, “Doutor Sono” se interessa pela reconstrução possível após o colapso. O filme não propõe soluções heroicas nem absolvições fáceis. Sugere, isso sim, que sobreviver ao medo exige mais do que escapatória: exige responsabilizar-se pelo que ele fez de nós. Não há vitória absoluta, mas há escolha, e esse é o gesto que separa a ruína da continuidade.
No conjunto, Flanagan alcança algo raro: uma adaptação consciente de que o verdadeiro terror não está nas entidades sobrenaturais, e sim na permanência da dor. “Doutor Sono”o é um filme que entende a literatura de King não como catálogo de sustos, mas como reflexão insistente sobre o que significa permanecer humano diante daquilo que tenta nos devorar. Enessa lucidez, não o brilho, é o que permanece.
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