O panorama do cinema francês de hoje reflete uma inquietude marcada por contradições, resistências e uma profunda análise de valores. Às vezes longe do glamour e da nostalgia da Nouvelle Vague ou do cinema de autor, introspectivo, as novíssimas produções da indústria cinematográfica da França tentam dialogar com um país acossado, numa perene crise identitária, espremido entre a valiosa herança de sua Revolução e urgências sociais inescapáveis neste insano século 21. Recorrentemente, as trapalhadas da polícia viraram tema de sátiras e dramas, colocando a nu a fragilidade das instituições e a distância entre o Estado e as pessoas. Filmes como “Ad Vitam” (2025), dirigido por Rodolphe Lauga, e “Bastion 36” (2025), levado à tela por Olivier Marchal derrubam tabus ao expor autoridades corruptas, despreparadas e truculentas, sintoma de uma degenerescência cívica espraiada por todas as lajes da pirâmide.
Junto a essa fecunda capacidade do cinema francês de criticar a tudo e a todos, as mulheres representam a consolidação de uma força exegética e estilística. Diretoras como Houda Benyamina e Céline Sciamma fizeram de seus trabalhos instrumentos de uma meditação poderosa sobre o corpo, a linguagem e o direito à liberdade. O tal empoderamento feminino não é mera palavra de ordem, mas uma prática: existe uma câmera a acompanhar as mocinhas e as candidatas a vilã em seus dilemas, prosaicos ou nem tanto, suas cotidianas guerras por autonomia e sua sobrevivência numa época em que, a despeito do inegável progresso, ainda são silenciadas. Em “Retrato de uma Jovem em Chamas” (2019), Sciamma encara os dédalos da libido feminina como uma necessidade de autoafirmar-se, dinamitando as fronteiras entre o privado e a atuação política, o individual e o coletivo. Benyamina, por sua vez, ilumina as diversas faces da vulnerabilidade social recorrendo a personagens que enxergam seu infortúnio de maneiras diametralmente opostas, o que faz de “Divinas” (2018) um enredo muito superior à média, que mereceu ter ganhado o prêmio de Melhor Filme de Diretor Estreante em Cannes. Sem favor nenhum.
A juventude sem emprego e sem horizonte; imigrantes; mães solo; e os trabalhadores precarizados e sem direitos encabeçam histórias que misturam dureza e sensibilidade, dor e esperança. O novíssimo cinema francês é, portanto, uma representação fiel desta quadra que atravessa a humanidade, corroborando seu pendor para a ruptura imprescindível. Além de “Ad Vitam”, “Bastion 36” e “Divinas”, figuram nesta seleção outros dois títulos que deixam claro que os cineastas do maior país da União Europeia não estão para brincadeira. Os cinco filmes, todos no catálogo da Netflix, incutem no espectador perguntas que clamam por respostas, sem abrir mão do refinamento e da graça. Essa onda de agora é inventiva, despretensiosa e forte como a outra.
Christophe Brachet / NetflixPara o bem ou para o mal, o cinema francês se diversificou. Seja por convicções estéticas, seja pela pressão aterradora e imperativa do mercado, na França de hoje se faz todo tipo de filme — e há que se dizer que as produções menos comprometidas com escolas artísticas e postulados filosóficos são as que mais têm se destacado, precisamente por agradar a todo gênero de público e não se ater a formalidades de concepção. Ao observar essa lógica, “Ad Vitam” se sai bem. O filme pipoca de Rodolphe Lauga não tem grandes pretensões, e essa é a maior qualidade de uma história e de um diretor que se sabem limitados sob um ou outro aspecto. Embora talentoso, Lauga não tem a menor vontade de se tornar o novo Alain Resnais (1922-2014) ou o Jean-Luc Godard (1930-2022) reconstruído, seja lá o que isso queira dizer. As trapalhadas da polícia vêm sendo matéria-prima para o cinema desde sempre, sob as mais diversas abordagens, em culturas as mais distintas. Talvez o detetive Franck Lazarev tenha sido um Frank Serpico algum dia, que farto de lutar contra um sistema vilipendiado pela corrupção, decide se juntar à banda podre antes que acabe como o personagem de Al Pacino no filme de Sidney Lumet (1924-2011). Depois de sobreviver a um atentado, Lazarev precisa resgatar a esposa, Leo, de Stéphane Caillard, do poder de uma facção tão organizada quanto perigosa — e estranhamente a salvo das investidas das autoridades. Aos poucos, o roteiro de Lauga, Guillaume Canet e David Corona desbasta as camadas de sombra que pairam sobre Lazarev, vivido pelo próprio Canet, adicionando uma subtrama de corrupção, levada em cenas de perseguições e muito bem-coreografados embates físicos, em que o protagonista, um ex-membro do GIGN, a tropa de elite da polícia da França, vai descobrindo podres de gente em que costumava depositar confiança cega.
Laurent le Crabe / NetflixDesde que o mundo é mundo, sai do terreno das exceções o envolvimento de agentes da lei em condutas que discrepam de suas atribuições constitucionais, para não se fazer menção às circunstâncias em que esses homens e mulheres são flagrados cometendo delitos tipificados com inequívoca clareza no Código Penal. Olivier Marchal mata sua sede de sangue em “Bastion 36”, mais um de seus filmes sobre gangues de policiais corruptos, com a personalidade de sempre. O diretor e o corroteirista Michel Tourscher parecem desejar reviver “36” (2004), em que Marchal coloca dois homens em conflito não exatamente para constatar quem é capaz de dar o seu melhor quando se trata de defender as instituições. Agora, Antoine Cerda, um comandante de polícia rebaixado para o patrulhamento ostensivo depois de uma falta disciplinar, luta quase sozinho contra os antigos colegas, e Marchal deita e rola fazendo o que gosta mais, isto é, amalgamando as crises de consciência do protagonista vivido por Victor Belmondo com incursões bastante idiossincrásica pelo noir, à Brian De Palma ou Robert Siodmak (1900-1973). Belmondo compõe com o veterano Yvan Attal cenas de impacto visual marcante, que deixam mais estarrecedora a sequência de homicídios e desaparecimentos. A impressão que fica ao cabo de mais de duas horas é que Olivier Marchal continua insatisfeito, e que, portanto, outros Antoine Cerda virão.
Pascal Chantier / Arte France CinémaLivremente inspirado em “Jacques, o Fatalista, e Seu Amo” (1778), romance do iluminista Denis Diderot (1713-1784), o francês Emmanuel Mouret discorre sobre uma mulher avant la lettre e avant-garde em “Mademoiselle Vingança”, história ambientada numa época em que ideias como feminismo, empoderamento, liberdade de expressão e autorrespeito não iam além de uma vesana utopia para as mulheres, criaturas plácidas em sua inferioridade social, até que uma não aguenta mais e se rebela. Num mundo sem internet ou redes sociais, grã-finos de estirpes variegadas driblavam o esplim tramando uns contra os outros, como se lê em “Ligações Perigosas” (1782), o típico novelão, saído da pena de Choderlos de Laclos (1741-1803), esse desabridamente antropofagizado pela cultura pop contemporânea em boas versões pós-modernas a exemplo de “Segundas Intenções” (1999), dirigido por Roger Kumble, e o recentíssimo “Justiceiras” (2022), levado à tela por Jennifer Kaytin Robinson. Madame de La Pommeraye, a personagem-título, é a viúva rica, já entrada em anos, mas ainda formosa, que se retira da corte do rei Luís 15 (1710-1774) para o luxo de uma opulenta herdade no interior. Cécile de France imprime a essa mulher a versatilidade que o papel exige, uma vez que, no começo da história, a protagonista apresenta-se num misto de conforto e senso de autoproteção quase paranoico, escaldada por relacionamentos quase trágicos e resistindo não sem alguma dificuldade às investidas do marquês d’Arcis, de Edouard Baer, um rematado casanova que se jacta de suas conquistas sem qualquer pejo, tendo o cuidado de fazer cada vítima se sentir como a primeira e a última. Na iminência do terceiro ato, Mouret junta as personagens que dão o arremate magníloquo a seu roteiro, sempre fiel à pena de Diderot. Alguns sabidos dizem que narrativas como essas estão datadas, “envelhecem mal” e xaropadas que tais. O noticiário dos grandes pequenos assuntos do dia a dia não se furta a desmenti-los sem embaraço algum.
Divulgação / NetflixAs comédias francesas vêm fazendo razoável sucesso entre espectadores do mundo todo, mesmo em meio aos que inicialmente torcem o nariz para o gênero. E em se tratando de uma história que junta um educador de conduta um tanto suspeita e uma senhora ainda aferrada a velhos maus hábitos, tudo em nome da recuperação de uma turma de adolescentes em situação de risco social, todo cuidado é pouco. “Sementes Podres” (2018) goza de prestígio equivalente a “Um Banho de Vida” (2018), dirigido por Gilles Lellouche, e “Mimadinhos” (2021), de Nicolas Cuche, com a vantagem de descer muito mais suave, ainda que suas pretensões deveras moralistas tendam a botar tudo a perder. O texto de Kheiron, também diretor do longa, tem peculiaridades, para o bem e para o mal. Nascido no Irã, o cineasta, reconhecido entre os bons comediantes da França, onde se radicou com os pais por motivos políticos nos anos 1980, imprime sua marca e sua história em tudo o que faz. Foi assim em seu primeiro filme, “Nós ou Nada em Paris” (2015), no qual, resguardado por larga medida de licença poética, narra a desventura de um cidadão iraniano que se estabelece na periferia parisiense com a mulher e o filho pequeno, este último seu próprio alter ego. Três anos mais tarde, ele volta à carga autobiográfica a fim de dar vida a Waël, imigrante e morador do subúrbio da capital francesa, como ele, que vai num programa de reabilitação de jovens em desacordo com a lei por ter sido ele mesmo flagrado num delito. Lidando com seis rebeldes em ebulição, furiosos com tudo, Waël se desdobra para tirar deles o melhor de cada um, conseguindo erradicar alguns de seus silêncios, diminuir seus complexos e dinamitar ideias errôneas cristalizadas desde sempre. “Sementes Podres” dribla situações involuntariamente ridículas — nada a ver com o figurino de Monique para o primeiro dia de trabalho — e se firma pelo conjunto da obra, imperfeito, monótono até, mas gracioso.
Divulgação / NetflixÀs vezes, os astros convergem, o universo conspira a favor e o cinéfilo, especialmente o que se dedica a cascavilhar filmes no campo árido do mundo digital, se depara com algumas boas surpresas. “Divinas”, da neófita Houda Benyamina, passa batido do grande público, apesar de ter vencido o prêmio de Melhor Filme de Diretor Estreante em Cannes. Merecidamente, a produção teve o fôlego renovado ao ser indicada ao Globo de Ouro, como Melhor Filme Estrangeiro de 2016. “Divinas” parece uma releitura de “Cidade de Deus” (2002), de Fernando Meirelles, ao retratar pessoas com uma origem em comum, mas que optam — e perseguem — uma trajetória distinta. Em “Divinas”, há Djigui, o garoto que não se seduz pela vida nem tão fácil do tráfico e se torna um artista, como o Buscapé do longa brasileiro, mas há também Dounia, que aspira à vida de crime e ostentação, à medida que convive com Rebecca, traficante já estabelecida no gueto em que vivem. É claro que a protagonista não tem a mais pálida ideia do que seja viver do tráfico, dos perigos a que se sujeitaria, de que pode se dar mal, muito mal, e que viver à margem da lei é, geralmente, um caminho para o qual não há retorno. Numa conjunção perfeita de roteiro, trabalho de atores, direção, montagem e trilha sonora, Houda Benyamina constrói cenas de impacto, ainda que sutis, e mesmo leves, explorando recursos aos quais o cinema já recorreu infinitas vezes, mas sempre de um ponto de vista inegavelmente original. Como a própria condição humana, “Divinas” é complexo, é denso. Onde floresce a desdita, transborda a graça.


