A expectativa de assistir a um retrato completo da vida de Harriet Tubman costuma iludir quem exige que cada detalhe biográfico seja respeitado como se a narrativa estivesse diante de um tribunal historiográfico. Tubman ultrapassou qualquer moldura possível: sua trajetória resiste a reduções, simplificações e, sobretudo, ao consumo rápido de quem olha para o filme apenas para apontar desvios factuais. Essa ansiedade por conferir a legitimidade de cada acontecimento tem ofuscado algo essencial: o filme também precisa se sustentar como experiência dramática. E, nesse ponto, existe uma integridade que merece análise antes de qualquer sentença apressada.
A direção faz uma escolha consciente ao delimitar um período específico da vida da protagonista, concentrando-se em seus atos de libertação e em sua fuga para o norte. Há quem enxergue nisso ausência, lacuna ou encurtamento de questões políticas, e é verdade que os debates mais contundentes sobre estratégia abolicionista aparecem apenas como vestígios. Porém, a decisão não nasce do descaso, mas de uma aposta narrativa: aproximar o público da urgência vivida por uma mulher que, antes de se tornar ícone, lutava simplesmente para continuar viva. Essa opção remove Tubman do pedestal e devolve a humanidade que muitos discursos heroicos roubam.
A interpretação de Cynthia Erivo sustenta essa perspectiva com firmeza. Seu olhar tem peso histórico e individual ao mesmo tempo: transmite medo sem esvaziar a coragem, espiritualidade sem ingenuidade. A crença da protagonista funciona como motor interno, e não como artifício dramatúrgico, articulando sentidos políticos que Hollywood costuma mascarar. É através desse vínculo íntimo com a fé que o filme constrói tensão de forma eficiente, principalmente nas sequências de fuga, onde a câmera evita brutalidade gráfica e ainda assim produz desconforto no espectador.
Há quem critique essa contenção, afirmando que a violência do período merecia exposição mais direta. Mas transformar sofrimento em espetáculo raramente ilumina o passado. Se “12 Anos de Escravidão” apostou na visceralidade do horror, “Harriet” tenta outro caminho: evidencia a opressão pela constante ameaça, pela presença de corpos brancos armados observando cada movimento, pela fragilidade física imposta a quem ousava sonhar. O controle, não o chicote, é o verdadeiro mecanismo de terror. Essa interpretação histórica tem mérito e fundamentação.
A fotografia de John Toll reforça esse sentimento ao criar ambientes que são ao mesmo tempo belos e sufocantes. A paisagem rural não é convite à contemplação; é lembrete material de que, mesmo diante da natureza aberta, não existe liberdade garantida. Esse contraste contribui para que cada deslocamento pareça uma violação de fronteiras invisíveis, já que qualquer passo em falso significaria a captura. O suspense nasce dessa geometria: o campo é vasto, mas a vida de Harriet se resume a corredores estreitos dentro dele.
Os pontos fracos, no entanto, não devem ser ignorados. O roteiro simplifica embates políticos importantes, esconde a radicalidade da protagonista e suaviza sua relação com a necessidade da força. Tubman não libertava apenas com palavras; suas ações envolviam riscos concretos para opressores também. Ao evitar mostrar isso com clareza, o filme guarda certa hesitação moral que compromete a complexidade histórica. As aparições rápidas de figuras como Frederick Douglass soam quase burocráticas, como se fossem notas de rodapé dramatizadas. Essa escolha empobrece a dimensão coletiva da luta abolicionista, que merece destaque tanto quanto o heroísmo individual.
Ainda assim, reduzir ”Harriet” à discussão sobre fidelidade histórica é perspectiva estreita. O cinema jamais foi verbete encenado, e não faz sentido exigir dele o rigor da academia enquanto ignoramos sua capacidade de traduzir conceitos em emoção. A própria Tubman talvez compreendesse melhor do que ninguém que a heroicidade não se prova nos detalhes, mas no impacto. O filme alcança esse impacto quando lembra que liberdade é ação, não discurso. E que nenhuma mudança política nasce sem alguém disposto a romper fronteiras reais e simbólicas.
Assistir ”Harriet” com olhos exclusivamente acadêmicos é perder de vista a urgência do que está sendo narrado. A arte, nesse caso, não deve pedir desculpas por escolher o coração do conflito ao invés de seu inventário completo. Se quem critica o longa por “inventar demais” aceita sem dificuldade deuses nórdicos com martelos mágicos, talvez seja hora de admitir que a seletividade dessas exigências diz mais sobre nossos hábitos culturais do que sobre a qualidade do filme. Tubman não precisa de fantasia para continuar gigantesca, e o filme, com acertos e limitações, cumpre o papel de convidar uma plateia desinformada a reconhecer a força de quem transformou fuga em revolução.
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