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O filme de Tarantino que reinventou a emoção no cinema e virou clássico instantâneo — disponível na Netflix Andrew Cooper / Miramax

O filme de Tarantino que reinventou a emoção no cinema e virou clássico instantâneo — disponível na Netflix

A primeira cena nem termina e já estamos escolhendo de que lado da lâmina queremos ficar. É irresistível torcer pela mulher que desperta em fúria, ainda coberta de passado, como se vingança fosse oxigênio. Em “Kill Bill Vol.1” Tarantino entende o apelo disso e não pede licença: ele serve violência como quem apresenta iguaria rara, e nós aceitamos o convite com a naturalidade de quem sempre desejou provar esse sabor. Ele nos empurra para dentro de um banquete de violência ao mesmo tempo requintado e debochado, como se quisesse provar que vingança pode ser gourmet, e que nós continuamos famintos por esse prato primitivo servido em porcelana fina.

Há quem veja exagero, mas eu enxergo método: Tarantino joga com o excesso como quem entende que a estética não é um detalhe, e sim a própria história. A coreografia dos golpes, o jorro escandaloso de sangue, a mistura improvável de cultura pop com cinema asiático, tudo pulsa sob a mesma lógica: transformar brutalidade em arte de performance. A morte é espetáculo, mas não há glamour superficial; há pulsão, há ferida exposta. E o público segue mesmerizado, cúmplice dessa celebração do caos.

A trajetória da Noiva (Uma Thurman) não pede explicações filosóficas, ela exige sangue. A sobrevivente que acorda de um coma e decide eliminar, um a um, os responsáveis por transformarem sua vida em ruínas, não quer piedade, quer justiça na forma mais instintiva e corporal possível. E é justamente essa simplicidade narrativa que libera Tarantino para brincar com o cinema como um DJ em êxtase: remixando memórias coletivas, atravessando referências, mudando ritmos com a ousadia de quem conhece cada cadência da cultura audiovisual.

A sequência animada que apresenta a infância de O-Ren Ishii é mais do que uma homenagem ao anime: é uma declaração estética. Ali, a violência infantil se transforma em poesia visual, como se o trauma, quando enquadrado com precisão, pudesse ser contemplado sem culpa. Lucy Liu executa sua vingança com a serenidade de quem sabe que a dor pode ser transformada em poder, e Tarantino registra isso com um entusiasmo quase adolescente, mas sempre consciente do que está fazendo.

A trilha sonora, essa curadoria aparentemente aleatória e absolutamente certeira, serve como nervo exposto do filme. Cada faixa chega como um lembrete de que estamos assistindo a um cinema que não quer se levar a sério… até o momento em que quer, e então crava seus dentes na nossa jugular emocional. O som não acompanha a imagem; ele a provoca, por vezes até a contradiz. E é nesse atrito que Tarantino encontra sua graça maior: ele faz o ridículo parecer sublime.

Entre lâminas, motocicletas e membros decepados, descobre-se que o que nos prende não é a violência em si, mas o ritual. A Noiva mata com a convicção de quem está retomando o próprio protagonismo, e poucos prazeres narrativos são mais sedutores do que assistir uma mulher redefinir o mundo com sua fúria. Somos hipnotizados não porque o sangue escorre, mas porque cada gota tem motivo. Vingança, quando legítima, vira catarse coletiva.

E há Bill, esse fantasma de entidade masculina que se insinua pela voz, jamais pela presença. Ele é o patriarcado transformado em antagonista clássico: distante, controlador, covarde. Sua ausência é tão poderosa quanto o gume da Hattori Hanzo; o medo que ele espalha não precisa de rosto. Tarantino compreende esse imaginário com rara esperteza.

“Kill Bill: Vol. 1” é a prova de que o cinema pode ser ao mesmo tempo grotesco e encantador, como um jardim de cerejeiras regado com sangue fresco. Não há pedido de desculpas, não há moderação. Há estilo. E o estilo, aqui, é a própria ferocidade. Quem espera lições morais está na sala errada; quem aceita dançar com a violência encontra um filme que pulsa com a liberdade que só o exagero permite.

Quando os créditos sobem, resta aquele sorriso culpado nos lábios: por que gostamos tanto disso? Talvez porque, no fundo, todos carregamos um pouco da Noiva, essa certeza íntima de que algumas dores só se resolvem quando a lâmina encontra o destino certo. E Tarantino nos oferece essa fantasia com a precisão de um samurai apaixonado pelo impacto do primeiro golpe.

O cinema que corta fundo permanece. E “Kill Bill” continua abrindo carne, gerações depois, com a mesma elegância blasfema.

Filme: Kill Bill Vol. 1
Diretor: Quentin Tarantino
Ano: 2003
Gênero: Ação/Crime/Suspense
Avaliação: 10/10 1 1
★★★★★★★★★★