O cinema raro que ensina a morrer sem medo — e a viver com mais coragem, na Netflix Divulgação / Crea SGR

O cinema raro que ensina a morrer sem medo — e a viver com mais coragem, na Netflix

“O Quarto Ao Lado”, filme de Pedro Almodóvar, encara de frente aquilo que a cultura contemporânea tenta disfarçar com distrações, o limite incontornável da existência. E não o faz com desespero ou sentimentalismo diluído, mas com a precisão intelectualmente incômoda de quem sabe que a morte, quando nomeada sem rodeios, transforma tudo em questão ética.

No centro da narrativa estão Ingrid (Julianne Moore) e Martha (Tilda Swinton), amigas que se afastaram não por conflito, mas pelo próprio fluxo da vida, essa força silenciosa que atravessa anos, redireciona propósitos e reorganiza afetos sem pedir licença. O reencontro se dá quando Martha, diagnosticada com um câncer irreversível, decide controlar a única decisão que o corpo lhe nega: como e quando partir. Ingrid, que durante a juventude partilhou de ideais e ambições com ela, torna-se então testemunha e cúmplice desse gesto de insubordinação diante do fim.

A doença, porém, não ocupa o espaço convencional de tragédia. Martha rejeita a ideia de se tornar refém da dor. Sua lucidez muda a natureza da narrativa: ela não quer compaixão, quer soberania. O que poderia ser tratado como derrota é assumido como última oportunidade de coerência consigo mesma. Quando Martha fala sobre seu desejo de ter controle, Ingrid reage com desconforto, como se a verdadeira ameaça fosse o desaparecimento da amiga e o consequente colapso do que ela própria acredita sobre vida e permanência. O debate, afinal, nunca é só sobre quem vai morrer, mas sobre quem precisa continuar.

A dinâmica entre as duas desmonta a visão romântica da amizade como porto permanente. Aqui, vínculo é responsabilidade: acompanhar o outro até o limite do suportável exige coragem que nem sempre se possui. A amizade é confrontada com seu teste final, não o riso compartilhado, não a lembrança juvenil, mas o compromisso de reconhecer no outro o direito inalienável de escolher sua própria história até o último capítulo.

Esse enfrentamento da autonomia diante da finitude traz à superfície um questionamento filosófico que atravessa séculos: até que ponto viver é obrigação? Se a vida é exaltada como bem supremo, convém perguntar se prolongá-la a qualquer custo não seria, paradoxalmente, uma forma de desumanização. Martha recusa-se a ser convertida em símbolo de resistência ou em mito de superação. Ela não quer ser lição, quer apenas ser sujeito.

O ambiente que as cerca reforça essa perspectiva: nada ali parece destinado ao luto. A villa onde Martha se refugia é cercada por exuberância e conforto, espaço incompatível com a imagem estéril e hospitalar que associamos ao fim da vida. O lugar, contudo, não representa negação da realidade; traduz, antes, a convicção de que o término não precisa significar decadência. A vida não se esvai porque se aproximou do último instante, ela se intensifica justamente porque o último instante está próximo.

“O Quarto Ao Lado” não quer consolar. Ele desloca o espectador para um território onde a morte ganha contornos racionais, quase administrativos, e ainda assim profundamente humanos. Ao suspender a retórica da esperança infinita, o filme deixa claro que dignidade não se mede por quantidade de tempo, mas pela capacidade de decidir o que fazer com esse tempo.

Talvez seja esse o ponto mais contundente: compreender que amar alguém é permitir que ele permaneça dono de si, mesmo quando isso significa aceitar a despedida antes que a natureza determine. Ingrid precisa aprender que a verdadeira lealdade nem sempre consiste em tentar salvar; às vezes, consiste em abrir a mão. No limite, o filme afirma que há coragem tanto em permanecer quanto em partir, e que o vínculo entre duas pessoas não é quebrado pela morte, apenas transformado por ela.

Em “O Quarto Ao Lado”, a morte não se ergue como inimiga. É tratada como certeza com a qual se negocia, e não como ameaça da qual se foge. Isso, por si só, exige maturidade rara, e nos lembra que viver não é somente resistir ao fim, mas escolher, até quando possível, como atravessá-lo.

Filme: O Quarto ao Lado
Diretor: Pedro Almodóvar
Ano: 2024
Gênero: Drama
Avaliação: 8/10 1 1
★★★★★★★★★★
Fernando Machado

Fernando Machado é jornalista e cinéfilo, com atuação voltada para conteúdo otimizado, Google Discover, SEO técnico e performance editorial. Na Cantuária Sites, integra a frente de projetos que cruzam linguagem de alta qualidade com alcance orgânico real.