Há histórias que prefeririam permanecer escondidas na gaveta pesada da História. Mas vez ou outra surge um relato que insiste em lembrar ao mundo que o horror não se sustenta apenas em armas, discursos inflamados ou símbolos costurados em braçadeiras, o horror se alimenta do silêncio, da obediência e daquela noção cruel de “normalidade” que as ideologias mais sombrias adoram vestir. Nesse terreno minado entre o absurdo e o cotidiano está “O Menino do Pijama Listrado”, um filme que se arrisca a contar o Holocausto não pelos trilhos dos poderosos, mas pelo olhar de uma criança que ainda não sabe temer: Bruno.
O garoto cresce cercado por conforto, dentro de uma família que vive da fantasia de que tudo vai muito bem, obrigada. A nova casa, longe de Berlim, tem jardim impecável e paredes que escondem o fedor da guerra. Bruno, com aquela inquietação típica de quem ainda não aprendeu a ter medo, encontra no limite da propriedade um campo cercado por arame que, aos olhos dele, parece mais estranho do que perigoso. Do outro lado, Shmuel veste o que ele imagina ser um pijama, porque como explicar a violência quando ela já se disfarçou de rotina?
O filme constrói algo raro: uma ingenuidade que não é tola, mas trágica. A amizade entre os dois meninos é tão espontânea quanto proibida. Não nasce de compaixão ou heroísmo, apenas da curiosidade sincera de quem ainda não foi adestrado a odiar. Bruno escuta discursos patrióticos, recebe lições de um tutor que idolatra uma nação e demoniza outra. Ele tenta absorver tudo, mas algo não encaixa. Aquele amigo magro, que perde familiares e vive atrás de cercas, não se parece nem um pouco com o monstro descrito pelos adultos.
A força do filme está em como revela que o mal não precisa rugir para existir. Ele também sussurra, passa pelo jantar de domingo, se acomoda na sala de estar e educa crianças sem que ninguém levante a voz. A mãe, com seus olhos que evitam encarar a verdade; o pai, orgulhoso da própria eficiência; a irmã, que troca bonecas por brasões nazistas, todos personificam o perigo da conformidade. Enquanto isso, o mundo de Shmuel se resume a sobreviver dentro da lógica brutal que escolheu quem deveria viver e quem precisava ser apagado.
Mas é Bruno, justamente o mais vulnerável, quem decide atravessar a fronteira. Não como ato político, e sim como gesto de lealdade infantil, aquele tipo de lealdade que desmonta qualquer justificativa ideológica, porque ainda não aprendeu a racionalizar a crueldade. A travessia, que começa como brincadeira, culmina em um desfecho que ninguém, nem mesmo o espectador acostumado aos relatos da Segunda Guerra, está preparado para encarar sem se desmanchar um pouco por dentro.
Quando a escuridão engole os dois meninos dentro das câmaras de gás, o filme entrega seu argumento definitivo: não há hierarquia na morte quando a maldade se torna política pública. O choque não é gratuito, é calculado para arrancar a máscara civilizada que muitos ainda tentam colar sobre o passado.
“O Menino do Pijama Listrado” evita grandes discursos porque entende que nada é tão devastador quanto a constatação de que a destruição pode parecer normal quando quem a pratica acredita estar fazendo o bem. A história de Bruno e Shmuel não é um conto sobre amizade “superando tudo”, mas uma acusação direta à covardia de quem não questiona, de quem apenas cumpre ordens, de quem troca empatia por patriotismo como quem troca uma camisa.
Talvez o cinema não cure feridas históricas. Porém, quando uma narrativa como esta nos força a enxergar o desumano pelo prisma da inocência, ela arranha nossa própria acomodação. E, no incômodo que deixa, encontramos o único antídoto possível contra o esquecimento: nunca naturalizar a barbárie.
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