Um dicionário. A porra de um dicionário, pelo amor de Deus. O despertar neurológico podia ser cuntatório. Quando Ambrósio entrou em coma, nos anos 1980, a disco music estavam no auge, juntamente com as calças boca-de-sino, os sapatos plataforma e as meias soquete. Ninguém esperava, mas, Ambrósio abriu os olhos e, sem tergiversar, disse “Alvíssaras! Bom dia, minha gente”. Em seguida, pediu uma chávena de média e disse que estava com uma vontade danada de voltar à discoteca para dançar de rostinho colado com Noeme, a sua noiva e quase cônjuge.
A claque de esculápios assombrou-se com a ressuscitação inusitada do longevo, decrépito paciente. Ambrósio sentiu-se furibundo e taciturno ao mesmo tempo quando soube, sem ambages, pelos magníficos lábios da loquaz enfermeira chefe, uma beldade de raro rabo, que Noeme não suportara o interregno temporal da convalescença, acabara se afeiçoando e se casando com um médico intensivista que, priscas eras, pagava plantões naquela UTI onde ele permanecera inerte como uma tora durante cerca de três décadas.
Ambrósio sentia a visão obnubilada. Frêmitos percorreram-no pela escangalhada coluna vertebral, danificada pela senectude e pelo prolongado decúbito dorsal no catre hospitalar. Sorumbático, ele procurou debalde pelo amor perdido num espaço recôndito do próprio peito. Nada descobriu senão um imensurável vazio. Carecia de ósculos e de amplexos que o resgatassem do ufanismo amoroso de outrora. Dissentia do que lhe reservava o maléfico destino. O sensualíssimo corpo-de-enfermagem segredou-lhe que há anos não aparecia ninguém para visitar ou pegar notícias suas. Aliás, com o passar do tempo, a entediada equipe médica desistiu de emitir boletins diários que ninguém leria.
Não restava mais o contato de algum familiar que houvesse sobrevivido ao lapso de tempo para informar que Ambrósio acordara por milagre ou por acaso, e insistia em se evadir depois da longa hibernação. Não tinha pertences pessoais para amealhar, muito menos, mudas de roupa. Então, após dizer “Adeus, pessoal, muito obrigado pela acolhida, que Deus lhes pague”, ele se escafedeu da UTI mais rápido do que o evacuar de um pavão com plumagem em branco-e-preto.
Ganhou as ruas, minimamente incólume, padecendo de vertigem, de astenia e da óbvia fotofobia. Sentia-se vítima de algum engodo. Trajado única e exclusivamente com uma estapafúrdia camisola fechada na parte de trás por generosas tiras de esparadrapo, a fim de não expor as muxibentas e escarificadas nádegas em público. Na saída do hospital, um raro filantropo arrumou-lhe um par de Havaianas que veio a calhar. Ambrósio percebia tudo novo e diferente. Não tinha um puto no bolso e, ainda que os aventais hospitalares possuíssem bolsos, ainda que tivesse dinheiro guardado, um fundo de reserva, a fortuna de nada valeria, tendo em vista que a moeda corrente no país mudara ao menos três vezes durante o soninho ambrosiano de décadas, decorrente do traumatismo craniano proporcionado por um mega-dicionário, um calhamaço de capa dura que fora atirado da janela de um prédio por um escritor medíocre acometido de periclitante crise produtiva.
A realidade escaganifobética transcendia o seu estilo kafkaesco. Foi tomado por conflitos agnósticos. Uma fuzarca vigia na sua mente, como se fora afetado por uma carraspana. Não entendia aqueles vocábulos empolados. Decidiu deambular até o antigo lar. Lembrava-se perfeitamente mal do endereço, mesmo assim, chegou ao destino mais rápido do que notícia ruim. Quando estancou defronte o logradouro onde antes ficava a maloca em que vivia, deparou-se com um espigão portentoso, bom de se pular dele. Ficou aturdido, desenxabido, sorumbático. Humílimo, buscou informações com o empedernido porteiro que ameaçou chamar a polícia se ele não vazasse. Supunha o porteiro filaucioso, arvorado na quintessência da arrogância, que ele fosse um andarilho mentecapto. A cidade andava repleta deles, uma verdadeira cornucópia de dementes. Ambrósio não esperava que o porteiro o admoestasse com vitupério. Relevou a grosseria do basbaque e encarou a pirambeira sem rumo certo.
No de-dentro do peito, doía. Enquanto descia a rua da amargura, sem fome de nada em particular, altercava pensamentos bons e ruins em relação a Noeme. Até a data do fatídico acidente literário, ele trabalhava como um diletante ascensorista num edifício comercial no centro da cidade. Mal sabia que a sua profissão se extinguira enquanto padecia do interminável coma. O mundo não dava voltas; capotava.
Passou a sentir ojeriza de Noeme, com a qual não se casara e não tivera descendentes. Era filho único. Seus pais foram ceifados por moléstias da velhice avançada durante o período em que permanecera imerso no silente ocaso. Miseravelmente, não se recordava de ninguém a quem pudesse recorrer para livrá-lo do perrengue de ter voltado à vida. Não tinha pedido por aquele milagre. Resolver o drama particular parecia uma verdadeira quimera. Transeuntes que por ele cruzavam tomavam-no por um evadido de manicômio, embora, há tempos, não houvesse manicômios operando no país.
Tinha anoitecido. Ambrósio idealizava um local recôndito onde recostar a combalida carcaça e chorar. Ficou tão acabrunhado que cogitou volver ao hospital de clínicas de onde se evadira. Depois de ter escapado da morte, passara a pensar nela de forma renitente, como se fosse a melhor alternativa. Palavra tinha poder. Aspirava tanto ao autoextermínio que acabou morrendo de repente, de causas naturais, pelas mãos de outro escritor vaidoso, no último parágrafo da história. Sob a merencória luz da lua, o lábaro que ostentava estrelado tinha fitas de esparadrapo atadas às suas costas.
