Quando nos lembramos de “Milagre na Rua 34”, a primeira imagem que vem à mente não é a de uma fita antiga, mas de um encantamento que insiste em atravessar gerações. É um filme que parece simples, afinal, trata de uma criança que acredita em Papai Noel, mas a graça e a densidade estão justamente em sua capacidade de manipular crenças, instituições e a própria ingenuidade humana com uma destreza quase satírica. O clássico de 1947 não é sobre o Natal: é sobre fé, capitalismo e a hipocrisia civilizada do pós-guerra americano, e mais ainda, sobre como nos vendemos a histórias que confortam, mesmo quando sabemos que são invenções.
A versão de 1994, assinada por John Hughes e dirigida por Les Mayfield, tenta navegar nesse mesmo rio de encantamento, mas com coletes salva-vidas de nostalgia e pequenas doses de cinismo moderno. O filme não consegue abandonar totalmente o esquema original: Kris Kingle continua sendo o epítome da bondade meticulosamente planejada, a garota que não acredita em Papai Noel é nossa janela para o ceticismo racional, e o sistema jurídico continua o grande palco para a fé versus razão. O problema é que Hughes parece encantado pelo próprio zelo em reverenciar o passado, e Mayfield, perdido entre o comercial e o sentimental, hesita em ousar. O resultado é um filme que é, ao mesmo tempo, carinhoso e frustrantemente tímido.
Richard Attenborough, retornando à atuação após anos atrás das câmeras, empresta ao Kingle uma combinação rara de gentileza e firmeza que jamais flerta com o exagero açucarado. Há momentos em que sua presença ilumina a tela com uma autoridade silenciosa, mas a narrativa frequentemente o empurra para arenas onde o encanto deve competir com convenções modernas que não se encaixam. Mara Wilson, a pequena Susan, é exemplar: inteligente, perspicaz, capaz de irradiar uma inocência curiosa sem jamais se tornar artificial. Ela personifica o dilema central do filme: aceitar a mágica como real sem perder o senso crítico, e, por extensão, nos lembrar de que aceitar narrativas é sempre um ato político.
O roteiro tenta inserir sutilezas satíricas, a discussão entre Santa e o sistema jurídico, os paralelos entre fé religiosa e fé infantil, mas frequentemente tropeça ao transformar nuances em subtramas redundantes. A cena do julgamento, emblemática no original, é deslocada, e o charme do “milagre” se dilui em uma espécie de pós-modernismo educado que não provoca, apenas conforta. Hughes brinca com o material, mas nunca se permite quebrar completamente a reverência, resultando em momentos onde a genialidade da sátira potencialmente implícita é substituída por previsibilidade.
Ainda assim, há brilho: pequenos gestos, olhares e interações, Kingle com a menina surda, a química silenciosa entre os personagens, o jogo delicado de ironia e ingenuidade, tornam o filme um exercício de amor pelo que foi e pelo que poderia ser. Ele nos lembra que histórias não envelhecem pelo que contêm, mas pelo que nos fazem sentir, e que, às vezes, aceitar o impossível é a forma mais prática de manter a esperança viva.
No fim, a versão de 1994 de Milagre na Rua 34 é um filme de contrastes: ousa na simpatia, hesita na inovação e se equilibra entre reverência e leveza crítica. É encantador quando quer, decepcionante quando hesita e, acima de tudo, é um espelho para a nostalgia que insiste em nos fazer acreditar que ainda podemos escolher crer, mesmo sabendo de todos os artifícios que sustentam a crença.
★★★★★★★★★★


