Um artista ambicioso transforma dor coletiva em projeto de carreira e, ao fazer disso um caminho de ascensão, ativa forças que escapam ao controle. Em “A Lenda de Candyman”, dirigido por Nia DaCosta e estrelado por Yahya Abdul-Mateen II, Teyonah Parris, Colman Domingo e Nathan Stewart-Jarrett, o protagonista persegue reconhecimento e encontra um mito disposto a cobrar coerência. A narrativa conecta desejo de fama e responsabilidade com quem sobreviveu a violências recentes, e cada passo em público altera o risco para todos à volta.
Anthony McCoy, vivido por Yahya Abdul-Mateen II, enfrenta estagnação criativa e encolhimento de espaço no circuito de galerias. Ele quer ser visto, precisa retomar a carreira e decide investigar relatos sobre um espectro associado a um antigo conjunto habitacional demolido. A escolha define o objetivo dramático e cria o primeiro obstáculo: a pesquisa exige circular por lugares onde lembranças de brutalidade policial e expulsão de moradores se chocam com a euforia do mercado imobiliário. Entrevistas e visitas de campo alimentam telas e ideias, mas aproximam Anthony de uma corrente de eventos que escapa à moldura da exposição planejada.
A primeira virada acontece quando a obra deixa de ser comentário e vira gatilho. A instalação que convida o público a repetir um nome diante do espelho não serve apenas ao conceito, ela muda comportamento dentro da galeria. O efeito imediato recai sobre quem participa do jogo, e a notícia desses episódios reacende o interesse pelo artista. A notoriedade cresce no mesmo ritmo em que sinais físicos e psíquicos o desestabilizam, estreitando a margem de manobra. O objetivo inicial, ganhar repercussão, começa a ser alcançado por um caminho que compromete a própria imagem do autor do trabalho.
Brianna Cartwright, interpretada por Teyonah Parris, administra as consequências profissionais e pessoais dessa aposta. Suas decisões deslocam o foco do olhar, principalmente quando ela questiona a apropriação de histórias alheias para alimentar carreira. Esses confrontos verbais não funcionam como pausa decorativa; eles reorientam prioridades e afetam o tempo dramático, impondo momentos de hesitação antes de novos saltos rumo à visibilidade. Cada recuo de Brianna diante do avanço de Anthony adiciona risco doméstico e profissional, detalhando custos que o protagonista ignora enquanto persegue espaço no circuito.
William Burke, vivido por Colman Domingo, atua como guardião de versões. Quando ele oferece novos fragmentos do passado do bairro, a motivação de Anthony muda de escala. O que começou como garimpo estético atravessa a história pessoal do artista. Essa reconfiguração ativa a segunda grande virada: a investigação já não busca apenas material para a próxima mostra, ela tenta decifrar por que o protagonista parece ligado ao mito que pesquisa. As marcas na pele e os lapsos de memória fazem o corpo contar o enredo, comprimindo o tempo de reação e encurtando opções de saída.
A progressão segue com clareza causal. A cidade remodelada fornece exposição pública para discursos de renovação, enquanto perdas reais são empurradas para fora do enquadramento. A montagem acelera quando a fama recente de Anthony coincide com investigações de mortes associadas à sua obra. Elipses concentram informação para evidenciar como o noticiário prefere versões rápidas, úteis à circulação de notícias e convites. Essa compressão pressiona o protagonista a avançar sem checar consequências, o que eleva o custo dramático a cada entrevista, demanda de produtores e nova exibição.
Nia DaCosta escolhe variações de ponto de vista que alteram informação e ritmo. As sequências com sombras e silhuetas não funcionam como ornamento, mas como relatos de origem sem narrador oficial, devolvendo a voz a quem circulou fora dos salões. Em ataques vistos por espelhos, a superfície refletora assume função narrativa: permite ver sem interferir, igualando o público aos consumidores de tragédias transformadas em espetáculo. A consequência direta recai sobre o conflito central, pois reforça a crítica a um artista que tenta capitalizar o medo coletivo enquanto ignora as pessoas que o sustentam.
Nathan Stewart-Jarrett, como Troy Cartwright, injeta ironia medidora de tensão e informa o passado com humor que afrouxa a corda apenas por instantes. Esse movimento ajusta a percepção do tempo entre pesquisa e violência, evitando uniformidade. Colman Domingo regula pausas e ênfases para que o peso das revelações dependa do gesto e da escolha de palavras, não de adjetivos. Yahya Abdul-Mateen II registra a transformação física do protagonista como registro documental do enredo: a cada nova pista, o corpo apresenta sintomas que encurtam o tempo de reação, encurralando Anthony diante de opções cada vez mais restritas.
O desenho sonoro afeta a leitura do espaço e do tempo sempre que vozes e chamados parecem vir de fora do quadro, empurrando a atenção para além do ambiente imediato. Em cenas de galeria, o contraste entre a limpeza do salão e sons vindos de histórias do bairro reforça a distância entre discurso e consequência. A trilha não busca destaque autônomo, ela ajeita o passo das cenas quando a pressão externa aumenta e quando as escolhas do protagonista encurtam horizontes de ação.
O momento decisivo reúne polícia, testemunhas e versões divergentes no mesmo cenário. A entrada ostensiva de agentes do Estado redefine prioridades de todos os envolvidos. Anthony precisa sobreviver e entender a transformação que o consome, Brianna mede se denuncia quem manipula a narrativa ou se busca saída imediata para permanecer viva. O espaço do confronto carrega passado e puxa a balança de poder para direções instáveis. O efeito imediato recai sobre a percepção pública dentro do universo do filme, que reavalia quem tem direito de falar em nome de quem sofreu.
As comparações úteis cabem à estratégia. Assim como “Corra!” e “Nós” integraram comentário social ao gênero, aqui o mecanismo central não está no discurso moralizante, mas no modo como o mercado cultural converte trauma em produto e transforma curiosidade em convite perigoso. A história não se apoia em grandes discursos, prefere ações que aproximam um homem de um mito e expõem espectadores à cumplicidade banal do gesto repetido diante de um espelho.
O resultado dramático mantém a pergunta em curso: quem lucra quando histórias violentas viram mercadoria, quem assume risco quando elas circulam como entretenimento e que tipo de reconhecimento um artista persegue ao reencenar traumas que não lhe pertencem integralmente. “A Lenda de Candyman” conecta escolhas privadas e consequências públicas com encadeamento verificável. Um objetivo pessoal alimentado por um sistema que recompensa choque puxa perdas difíceis de reparar, e o gesto aparentemente inofensivo de pronunciar um nome passa a carregar um custo que continua a se atualizar na cidade remodelada.
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