Fantasticamente estranho, filme com Tilda Swinton chega à Netflix — e você vai querer assistir duas vezes Divulgação / A24

Fantasticamente estranho, filme com Tilda Swinton chega à Netflix — e você vai querer assistir duas vezes

Um homem chega a uma cidade que promete oportunidades, porém exige documentos que vencem. Ele acredita que talento e esforço bastam, mas descobre que prazos e carimbos definem o jogo. Dentro desse conflito concreto, “Problemista” reúne Julio Torres, Tilda Swinton e RZA sob direção de Julio Torres para contar, com precisão, como objetivos pessoais colidem com regras impessoais.

O protagonista Alejandro, salvadorenho vivido por Julio Torres, tem um objetivo mensurável, permanecer em Nova York para virar designer de brinquedos. O obstáculo principal é o visto prestes a expirar, que transforma cada dia em recurso escasso. Para ganhar tempo e conseguir uma carta capaz de sustentar a permanência, ele aceita trabalhar para Elizabeth, interpretada por Tilda Swinton, uma figura do circuito artístico que perdeu espaço e tenta reerguer o legado do parceiro Bobby, artista interpretado por RZA. A entrada de Alejandro nessa rotina altera o vetor do enredo, porque ele passa a dividir o tempo entre o próprio sonho e as demandas da chefe, que o envia a tarefas urgentes e confusas. Cada missão atende a um interesse imediato de Elizabeth e empurra o plano do visto para depois, o que aumenta o risco e a ansiedade.

A primeira virada vem quando Alejandro percebe que a carta necessária não depende só de mérito, depende de quem assina. A informação muda a rota, pois ele precisa cultivar relações com curadores e galeristas que possam legitimar o talento no papel certo. A partir daí, a busca por quem escreve a carta vira eixo dramático. Um encontro com um contato promissor, organizado às pressas, exige que ele abandone um compromisso com Elizabeth. A decisão produz efeito em cadeia, porque a chefe lê a ausência como traição e dificulta o acesso à própria rede. O filme amarra a sequência de pequenos gestos, mensagens mal interpretadas e horários perdidos, sempre relacionando ação e custo.

Outra virada ocorre quando a situação de criopreservação de Bobby passa a ditar o ritmo das cenas. Elizabeth decide que gestionar a obra de Bobby e preparar uma mostra pode trazer atenção e, por consequência, a carta que Alejandro precisa. O trabalho ganha uma urgência logística, com custos e decisões ligados ao congelamento e à circulação das obras, e essa carga interfere diretamente no relógio do visto. A preparação desse pacote de tarefas redistribui forças: Alejandro fica mais perto de uma chance concreta, porém se torna refém do temperamento de Elizabeth, que muda de plano no meio de uma conversa e troca prioridades sem aviso. A dinâmica cria um campo de instabilidade que pressiona as escolhas dele.

A narração de Isabella Rossellini, usada em momentos estratégicos, altera o ponto de vista. Quando a voz explica uma regra do sistema imigratório, a cena ganha valor informativo e o tempo dramático se comprime, porque o espectador entende, de imediato, o que está em jogo naquele dia específico. Esse recurso esclarece a informação e reforça a contagem regressiva. A montagem sustenta essa sensação com cortes que saltam de filas a telas de computador, e-mails que voltam com erro e planilhas de custos, indicando que cada corte subtrai minutos do prazo de Alejandro.

O roteiro amarra ainda pequenos trabalhos paralelos, aulas dadas por pouco dinheiro, bicos de aplicativo, ofertas enganosas, que prometem resolver um problema e criam outro. Em uma visita a um possível patrocinador, Alejandro precisa adotar um discurso que não reconhece o próprio trabalho, e isso repercute depois, quando ele tenta explicar o projeto a alguém que poderia assinar a carta. O filme insiste na causalidade, a simplificação feita para agradar ali cobra um preço adiante, porque diminui a singularidade que justificaria o apoio formal. Nas conversas com a mãe, por telefone, ele recebe consolo, porém também uma cobrança implícita, use o tempo com inteligência, o que redobra a pressão.

Elizabeth, por sua vez, não é apenas vilã. A personagem tem um objetivo claro, preservar e valorizar a obra de Bobby, e adota um modo errático, que alterna exigências absurdas e gestos de cuidado. Tilda Swinton interpreta essa oscilação com rigor, o que desloca o foco do capricho ao cálculo, ela entende que precisa de alguém que aguente o tranco e, por isso, testa limites. Quando decide que uma ligação precisa acontecer naquele minuto, a decisão muda o curso do dia de Alejandro, cancela uma reunião essencial, adia um pagamento, e o risco do visto aumenta. A relação entre os dois move o filme porque cada aproximação ou desentendimento tem impacto material, dinheiro gasto com deslocamento, taxa perdida por atraso, oportunidade que se fecha.

O ponto máximo se dá quando a promessa da carta coincide com o prazo derradeiro do visto e com a preparação da mostra ligada a Bobby. Alejandro precisa escolher onde estar e com quem falar. A sequência reúne três linhas de tensão, o e-mail que precisa de resposta imediata, a assinatura que pode sair se ele aparecer em determinado endereço, e a tarefa que Elizabeth exige para contornar um problema técnico. O risco é nítido, se ele prioriza a carta, rompe de vez com Elizabeth e perde a ponte com o circuito de arte, se ele atende Elizabeth, pode perder a chance administrativa que depende de poucos minutos. A consequência imediata é um deslocamento frenético pela cidade, que reorganiza alianças e revela quem está disposto a ajudar quando não há mais folga no relógio. O filme preserva a resolução, mas deixa claro que qualquer escolha ali reescreve o futuro do personagem.

Os aspectos técnicos aparecem colados à função dramática. A fotografia alterna interiores apertados e corredores longos para sublinhar a sensação de labirinto, cada porta leva a uma regra nova, cada sala tem um formulário diferente. A trilha marca a urgência quando mensagens acumulam no celular, depois silencia em encontros decisivos, para concentrar o foco na fala que pode garantir ou negar a carta. As atuações sustentam o desenho causal, Julio Torres compõe um Alejandro que aprende a dizer não, e cada negativa desloca o eixo de poder, enquanto Tilda Swinton faz de Elizabeth uma força que mede valor em presença e obediência, o que explica por que um atraso vira crise.

O desfecho fica protegido, porém as consequências diretas do ponto máximo se espalham pelas cenas finais. Contatos que pareciam inúteis reaparecem, portas que se fecharam se reabrem sob nova condição, e um gesto de coragem, por menor que seja, altera a forma de negociar o sonho. “Problemista” transforma burocracia em dramaturgia, porque cada documento tem dono, cada prazo tem guardião e cada escolha tem custo. Na prática, a pergunta não é se Alejandro tem talento, é quem reconhece esse talento no papel certo e em que tempo. Essa pergunta sustenta a tensão até o último minuto da narrativa e define o lugar do personagem na cidade que cobra caro por cada tentativa.

Filme: Problemista
Diretor: Julio Torres
Ano: 2023
Gênero: Comédia
Avaliação: 9/10 1 1
★★★★★★★★★