Algumas doenças têm o poder de reorganizar a vida sem pedir licença, expondo a fragilidade de tudo aquilo que parecia sólido. “50%” encara esse fenômeno com a sobriedade necessária para compreender que a crise não está apenas no corpo que adoece, mas na forma como relações se desmontam, se reinventam ou se revelam diante do inesperado. A história acompanha um jovem de 27 anos que recebe um diagnóstico tão improvável quanto brutal. A partir daí, não há espaço para heroísmo fácil, tampouco para o sentimentalismo que costuma contaminar narrativas sobre enfermidade. O filme aposta na observação direta dos efeitos colaterais que uma notícia dessas provoca no indivíduo e no seu entorno.
O protagonista, vivido por Joseph Gordon-Levitt, acostumado a controlar tudo o que pode, se vê incapaz de administrar o próprio destino. A racionalidade que sempre organizou sua rotina se torna inútil diante de um inimigo que a medicina ainda compreende pela metade. Em lugar do desespero teatralizado, ele luta para continuar existindo nas pequenas decisões: sair de casa, trabalhar, fingir normalidade. Esse esforço revela um aspecto essencial: o sofrimento raramente tem a aparência dramática que o cinema costuma lhe atribuir. Ele se esconde no silêncio, nos gestos contidos e em conversas que terminam rápido demais porque a verdade ali é insuportável.
Cada personagem ao redor reage ao diagnóstico com uma lógica própria, e é nessa multiplicidade que o filme investe. Há quem se apoie em frases prontas para lidar com o desconforto; quem use a dor alheia como justificativa para a própria fuga; quem ofereça atenção excessiva por medo de desaparecer. Essas reações não são julgadas, apenas expostas com lucidez. A doença funciona como um teste involuntário para vínculos que pareciam definitivos. Em alguns casos, eles se mostram ocos. Em outros, inesperadamente sólidos.
O humor, elemento delicado nesse contexto, surge como mecanismo de sobrevivência e não como alívio irresponsável. Quando um amigo tenta transformar sessões de tratamento em oportunidades de piada, o gesto é menos sobre rir da condição e mais sobre impedir que ela seja a única narrativa possível. O riso, aqui, não nega a gravidade, apenas recusa a ideia de que o diagnóstico é o fim da experiência humana. Entre um comentário inoportuno e outro, permanece a vontade de não deixar o cotidiano ser engolido pelo medo.
O filme também se interessa pela forma como a perspectiva pode mudar de maneira abrupta. Um corredor de hospital pode causar repulsa num dia e euforia no outro, sem que nada ao redor tenha efetivamente mudado. A variação emocional é parte do tratamento, assim como a química do próprio corpo, o entorno também oscila. Essa compreensão demonstra sensibilidade para algo que raramente é representado com precisão: viver com uma doença grave significa lidar com contradições permanentes.
O roteiro evita reduzir a narrativa a uma disputa insossa entre viver e morrer. A questão real é outra: como continuar sendo sujeito de si mesmo quando todos ao redor parecem saber melhor o que você deve sentir? O maior conflito do personagem não está no tumor, mas na disposição de preservar sua autonomia enquanto se torna objeto de preocupação constante. A terapia, conduzida por uma profissional inexperiente, oferece espaço para que ele teste essa autonomia: reconhecer limites, admitir angústias, experimentar a vulnerabilidade como exercício necessário.
Quando a história alcança seu ponto de inflexão emocional, a explosão não vem como catarse hollywoodiana. O que se observa é o colapso de um homem que não encontra mais justificativas para se manter estável. É nesse instante que o filme afirma sua maturidade: não existe evolução linear, tampouco coragem eterna. Existe exaustão, e a coragem se mede pelo que se faz depois dela.
“50%” se impõe como reflexão sobre a precariedade da existência e sobre o quanto projetamos certezas em terrenos absolutamente instáveis. O cinema costuma tratar a doença como metáfora final, como se tudo precisasse convergir para moralidades consoladoras. Aqui, essa tentação é abandonada. A doença não purifica, não ilumina, não transforma ninguém em sábio. Ela apenas expõe o que já estava lá, as falhas, os medos, os afetos que resistem apesar da incerteza.
O resultado é um filme que não busca ensinar como lidar com o pior, mas registrar o choque entre o desejo de permanência e a realidade da finitude. Não há lição pronta nem conforto universal. Há a constatação de que cada um atravessa esse território como pode. E, quando o corpo perde metade das garantias, resta descobrir se o que sobrou é suficiente para seguir respirando.
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