O enredo acompanha uma professora e escritora que herda um dogue alemão do melhor amigo recém-falecido. Vivendo sozinha em Nova York, ela se vê diante de questões práticas que começam pelo tamanho do animal e avançam para conflitos com vizinhança, contratos e rotina de trabalho, ao mesmo tempo em que a ausência do amigo amplia a sensação de deslocamento. O cão ocupa o apartamento, altera horários, impõe passeios e exige cuidado, e nesse convívio nasce um caminho possível para lidar com a perda e com a vida em curso.
Em “O Amigo”, com Naomi Watts e Bill Murray, dirigido por Scott McGehee e David Siegel, a narrativa é adaptação do romance homônimo de Sigrid Nunez. A presença do livro se nota no interesse por pensamentos, lembranças e pequenas observações que aproximam literatura e cotidiano sem transformar a tela em ilustração de páginas. O filme trabalha com situações discretas que conectam trabalho intelectual, amizade e responsabilidade afetiva diante de um animal que não fala, mas ocupa cada metro do cenário.
A escolha de começar pelas implicações práticas da herança evita sentimentalismo e define o tom. A protagonista precisa negociar com o prédio, com os sons, com o elevador apertado, com a rua que não foi pensada para um cão daquele porte. Em vez de fabricar grandes conflitos, a narrativa prefere os atritos miúdos do dia a dia, e deles tira consequências concretas: uma conversa difícil com o síndico, a reorganização da mesa de trabalho, o aprendizado de novos percursos no bairro. A cidade aparece como lugar de idas e vindas, de pequenos favores e de regras que deixam pouco espaço para imprevistos.
Naomi Watts constrói uma personagem contida, de movimentos econômicos, que tenta seguir com a disciplina do ofício enquanto a cabeça insiste em retornar ao amigo ausente. O luto é mostrado nos detalhes: o caderno que fica fechado mais tempo, a aula que exige postura profissional, a visita inesperada que força um relato breve. Não há cenas de descarga emocional prolongada; há uma atenção persistente a sinais de cansaço, hesitação e cuidado. Bill Murray, ainda que menos presente em tela, oferece ao amigo a qualidade de uma lembrança insistente, reforçada por memórias e conversas que continuam a ecoar quando a protagonista caminha com o cão.
O animal é filmado como corpo e como presença. A câmera acompanha respirações, tropeços, a necessidade de sair de casa sob chuva, a dificuldade de deitar em superfícies menores do que ele. Ao insistir nesses gestos, o longa explica por que a convivência muda a personagem: para cumprir o básico, ela precisa ir à rua, falar com gente, administrar incômodos e construir rotinas. A relação se estabelece sem antropomorfismo fácil. Não há truques para fazer o cão “atuar” como pessoa. Há um acordo que se forma lentamente, feito de horários e repetições.
McGehee e Siegel mantêm um ritmo que privilegia observação e escuta. A montagem evita sublinhar emoções e deixa as transições respirarem. Cada passagem entre espaços tem função narrativa: o corredor que se atravessa com pressa, o hall que aperta, a praça que abre campo para o descanso do animal e para conversas rápidas com desconhecidos. Essa cadência permite que o humor apareça sem quebrar o tom, quase sempre a partir do desajuste entre o tamanho do cão e a cidade que não foi feita para ele.
O filme também olha para o trabalho da protagonista sem idealização. Em sala de aula, ela lida com perguntas e prazos; em casa, enfrenta telas em branco e demandas que a distração do luto torna mais pesadas. A herança de Apollo impacta esse cotidiano: há menos tempo para espirais mentais, mais compromissos com tarefas concretas. O foco do roteiro está em como responsabilidades novas podem abrir espaço para uma reorganização interna que não apaga a dor, mas a torna menos paralisante.
O desenho de som valoriza os sons do ambiente e os sinais do cão. Coleira, passos, portas, motores: elementos que reforçam a materialidade dos espaços e substituem explicações. A trilha musical entra de modo contido e sai antes que a cena dependa dela. A fotografia alterna interiores que comprimem com exteriores que aliviam, uma alternância coerente com a curva de adaptação da dupla. Não há busca por beleza chamativa; há constância e atenção aos rostos, às mãos e às superfícies gastas pelo uso.
Eventuais romances laterais aparecem como possibilidade de vida social e não como solução para a solidão. O filme os trata com reserva, como parte do processo de alguém que precisa testar novamente o convívio humano após uma perda central. Esse cuidado ajuda a manter o foco no eixo que sustenta a narrativa: a amizade que segue presente, agora mediada por um animal que exige responsabilidade diária e devolve companhia silenciosa.
Ao adaptar o romance de Nunez, a produção preserva o interesse por vozes internas e por relações de mentoria sem trair a autonomia do cinema. A protagonista lembra coisas que ouviu do amigo, consulta livros, tenta voltar ao ritmo de escrita, e é nessa luta ordinária que a presença do cão se mostra decisiva. A história sugere que vínculos fortes não desaparecem com a morte; eles mudam de forma e pedem novas rotas de cuidado, o que inclui aceitar ajuda inesperada.
Quando a rotina finalmente encontra atrito menor com as exigências do animal e com a cidade, a narrativa não oferece virada triunfal. O que se vê é a consolidação de hábitos que permitem algum sossego e a possibilidade de trabalho mais estável. Há perdas que não se resolvem, mas podem conviver com a vida que segue, e o filme termina apontando para essa convivência possível. A última impressão é de continuidade, sustentada por uma coleira, uma caminhada e uma mesa que volta a receber páginas novas.
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