Nenhum treinador de pilotos de corrida acorda pela manhã imaginando que seu legado será eternizado pelo olhar de um cachorro. Talvez por isso que “A Arte de Correr na Chuva” dispare, já na primeira cena, uma sensação que mistura vulnerabilidade e ternura: somos convidados a enxergar a vida humana a partir de quem nunca teve voz, mas sempre esteve ali, testemunhando, amando, temendo o abandono. Enzo, o narrador canino, inaugura uma perspectiva que desmonta a arrogância antropocêntrica: quem disse que somente nós compreendemos a ética da lealdade?
A narrativa gira em torno de Denny, um sujeito comum que convive com o paradoxo da velocidade: quanto mais um piloto tenta dominar o tempo, mais descobre que ele escapa pelas frestas daquilo que chamamos destino. A corrida torna-se metáfora, não dessas óbvias e gastos discursos motivacionais, mas de um enfrentamento íntimo com a instabilidade da existência. E Enzo, com sua filosofia silenciosa, entende antes de todos que perseverar não é vencer, mas suportar o percurso inteiro.
O filme poderia se contentar em explorar apenas o afeto fácil: o cachorro fiel, o dono dedicado, o choro programado. Entretanto, há algo mais duro aqui: o medo de perder quem sustenta nossa sanidade emocional. Quando a doença invade a rotina de Denny e Eve, o que desmonta não é a fragilidade do corpo, mas a constatação de que nenhum amor está blindado contra o acaso. O cinema, às vezes, insiste em lembrar que amar alguém é flertar com a catástrofe.
O que torna o filme instigante é justamente o contraste entre a delicadeza do narrador e o mundo duro no qual Denny é obrigado a resistir: batalhas judiciais, a crueldade de familiares que veem o amor como ameaça, a pressão constante para abandonar sonhos que não pagam as contas. Não há glamour no fracasso, mas há dignidade, e esse é um valor político, embora raramente confessado. Amar um cachorro, afinal, não é luxo afetivo: é exercício radical de cuidado. Quem não compreende isso costuma achar exagero quando um adulto adulto cai em prantos ao falar de um animal, como se a dor tivesse hierarquia.
A direção investe num uso preciso da subjetividade canina: não há condescendência, nem humor barato que transforme Enzo num bibelô falante. Kevin Costner empresta ao pensamento do cachorro uma gravidade discreta, quase filosófica, e, sim, eu assumo: já conheci intelectuais menos interessantes do que esse cão. O roteiro, por sua vez, evita edulcorar totalmente os defeitos humanos. Denny erra, hesita, explode em silêncio. E é nessa imperfeição que Enzo o reconhece como seu igual. Suas falas internas, aliás, soam como lembretes que gostaríamos de repetir aos vivos: não confiem tanto na estabilidade, ela não existe.
É fácil etiquetar esse tipo de produção como “filme de chorar”. Redutor. O verdadeiro mérito está em permitir que a audiência reconheça o luto antes que ele aconteça. Quem já amou um bicho sabe que a vida ao lado dele é uma contagem regressiva: cada brincadeira tem um quê de despedida. E mesmo assim insistimos, porque a alegria compensa o abismo.
Se há algo que o filme grita, e grita com doçura, é que nenhuma existência é pequena quando alguém a guarda com carinho na memória. E, quando as luzes da sala se acendem, alguns espectadores fingem coçar os olhos, como se a emoção fosse pólen no ar. Todos sabemos a verdade: chorar, nesse contexto, é privilégio de quem teve a sorte de ser amado por um animal.
Filmes assim carregam uma confiança rara: a de que a vulnerabilidade ainda pode nos salvar da apatia. E talvez seja esse o ponto que incomoda quem insiste em bancar o durão. No fundo, ninguém está preparado para dizer adeus, mas, por uma curiosa generosidade do destino, os cães nos ensinam a fazer isso com dignidade. Porque se a vida é uma pista molhada, a maior vitória é cruzar a linha final tendo amado até o limite do possível.
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