O tipo de filme que você não assiste. Você aguenta, na Netflix Divulgação / Netflix

O tipo de filme que você não assiste. Você aguenta, na Netflix

A repórter Arezoo Rahimi chega à cidade sagrada de Mashhad para investigar a série de assassinatos que o noticiário local evita destacar. Em “Holy Spider”, de Ali Abbasi, a tensão nasce do confronto entre o dever profissional e a estrutura social que protege o criminoso. Vivida por Zar Amir Ebrahimi, a jornalista encontra um ambiente hostil, no qual as vítimas são vistas como descartáveis. Do outro lado, Saeed, interpretado por Mehdi Bajestani, acredita agir como instrumento de limpeza moral. A ideia central é direta: quando a violência recebe amparo religioso e tolerância estatal, transforma-se em regra não escrita.

A investigação começa com a constatação de um padrão: corpos abandonados em áreas periféricas após estrangulamento, sempre mulheres pobres e invisíveis para as autoridades. O objetivo de Rahimi é provar a continuidade dos crimes e forçar uma resposta pública. O primeiro obstáculo surge na delegacia, onde a apuração é tratada com descaso. Ao buscar documentos e registros, a repórter enfrenta negativas e insinuações que tentam desviar o foco do caso para a reputação das vítimas. A cada morte, cresce a urgência por uma prova inequívoca que ligue o assassino aos locais de crime, porque a repetição do mesmo procedimento indica método e convicção.

Saeed aparece como homem comum que reza, trabalha e volta para casa. Essa rotina sustentada em cenas diurnas contrasta com as saídas noturnas. Quando atrai suas vítimas, o tempo dramático abranda. A câmera se aproxima e alonga a espera, o que acompanha a escalada do risco. A repetição do padrão produz consequência imediata: Rahimi entende que a permanência do desconhecido favorece o agressor e decide ampliar a própria exposição em campo. O caminho até ali delineia um jogo de gato e rato em que a cidade funciona como território complacente.

A primeira virada ocorre quando ela opta por agir fora do circuito editorial, calculando que qualquer atraso beneficia o assassino. A decisão altera a relação entre objetivo e perigo. A repórter passa a circular pelas mesmas ruas que atraem Saeed. O filme reposiciona o ponto de vista com uma série de deslocamentos noturnos, em que carros, becos e hotéis baratos se tornam cenários de espera. A fotografia adota contrastes mais duros e reduz a visibilidade, o que limita as saídas do personagem perseguido e da investigadora. Nessa fase, Rahimi passa a colaborar com Sharifi, editor local que mede o risco político da cobertura e tenta manter a reportagem dentro de limites aceitáveis para as autoridades.

No espaço doméstico, Saeed sustenta a imagem de pai e marido para manter a fachada. A pressão das ausências e do dinheiro rápido introduz fissuras na aparência de normalidade. O criminoso percebe que a devoção pública o protege e que parte da comunidade o enxerga como agente de ordem. Essa aceitação social, ainda que sussurrada, funciona como combustível para novas caçadas. Cada noite sem explicação sólida em casa amplia a confiança dele e, em consequência, a ameaça às mulheres que trabalham nas ruas. O quadro moral da cidade concede a Saeed a sensação de missão e reduz o constrangimento que impediria novas ações.

Rahimi rastreia motéis e táxis, cruza horários e plantões e conclui que a prova direta depende de contato com o agressor. A preparação dessa armadilha desloca o filme para o terreno da antecipação. A investigação deixa de operar com relatos e passa a depender de presença física. O risco aumenta porque qualquer movimento precipitado compromete a chance de captura. O cálculo é simples: uma abordagem bem-sucedida fornece o elo que a polícia não quer ou não consegue apresentar. Os passos seguintes exigem coragem e coordenação mínima, mesmo com a resistência institucional que segue ativa.

O encontro com Saeed ocorre em ambiente controlado por ele. O perigo é imediato. A proximidade entre os dois reduz a margem de erro. O filme estende o intervalo entre intenção e ato, alonga silêncios e prende os personagens a enquadramentos que limitam a fuga. A informação visual, aqui, altera a percepção de tempo: a demora em cada gesto reforça a vulnerabilidade da repórter e a autoconfiança do agressor. O ponto máximo desse bloco concentra risco, escolha e consequência: Rahimi sabe que qualquer hesitação pode encerrar a investigação e provocar mais mortes, enquanto o assassino mede a possibilidade de executar mais um crime sem despertar reação do entorno.

A captura muda o eixo e leva a disputa para o tribunal. A consequência direta do trabalho de Rahimi é a transformação do criminoso em figura de disputa pública. No julgamento, discursos religiosos disputam espaço com o procedimento legal. Parte do público enxerga penitência, outra parte enxerga exemplo. A hesitação das autoridades reforça a leitura do filme: sem consenso sobre o valor da vida das vítimas, o processo judicial se contamina. A jornalista observa que a prisão encerra uma etapa, não o problema que permitiu os crimes. O que está em jogo é a mensagem institucional que chegará às ruas após o veredicto.

O ritmo passa a depender da possibilidade de impunidade moral. A imprensa calcula audiência, a polícia se protege de críticas e a família do criminoso tenta preservar uma memória aceitável. A narrativa evidencia o efeito de cada decisão. Quando um líder local relativiza as mortes, a fala legitima novas ofensas às sobreviventes. Quando um editor corta trechos da reportagem, a cidade recebe informação parcial. A cadeia de causa e efeito se mantém clara: decisões que poupam sensibilidades públicas prolongam o ambiente que favoreceu o assassino.

Os recursos técnicos aparecem quando modificam a leitura do conflito. A trilha reduzida reintroduz sons do ambiente e devolve atenção à respiração dos personagens. Em passagens de espera, esse desenho sonoro alonga a percepção de perigo. A alternância de planos fechados e janelas traseiras de carros reforça a sensação de vigilância. Em cenas de investigação, a limitação de luz cria zonas de incerteza que espelham o alcance da lei naquele território. Cada escolha formal tem função informativa, sempre vinculada ao avanço ou à estagnação do objetivo da repórter.

O trabalho de Zar Amir Ebrahimi se apoia em contenção e foco. A interpretação evita gestos heroicos e sustenta a determinação de Rahimi com ações práticas, como a coleta de horários, o confronto com autoridades e a decisão de se expor em campo. Mehdi Bajestani constrói um Saeed convicto e funcional, um homem que se mantém dentro das regras públicas para quebrá-las na sombra. Esse contraste sustenta a progressão do enredo: a repórter precisa de fatos e o criminoso depende de silêncio, o que coloca ambos no mesmo circuito de ruas e horários e mantém a cidade como cenário cúmplice.

A parte final observa os efeitos do caso sobre Mashhad. O filho do agressor repete frases do pai, vizinhos discutem o valor da punição e a imprensa calcula o próximo tema. A narrativa não oferece reparação ao país nem à fé, concentra-se na pergunta prática que move a história: quem decide o que vale uma vida quando as instituições oscilam entre devoção e lei. “Holy Spider” mantém a atenção voltada para a consequência social dessa resposta, que permanece em disputa nos corredores, nas salas de audiência e nas ruas de Mashhad.

Filme: Holy Spider
Diretor: Ali Abbasi
Ano: 2022
Gênero: Crime/Drama/Suspense
Avaliação: 9/10 1 1
★★★★★★★★★