Famílias são formadas por seres humanos, imperfeitos, com expectativas e personalidades diferentes, até antagônicas, com suas tantas feridas emocionais, muitas vezes sem cura. Casamentos balançam no tédio da rotina, precisam enfrentar a instabilidade dos exaltados ânimos, driblam a escassez financeira, mas desabam quando não percebe-se mais nenhum vínculo. Lamentavelmente, há casos que preenchem todas as possibilidades da tragédia e então surge a pergunta: por que algumas famílias começam? Sidney Lumet (1924-2011) tenta elaborar uma resposta em “Antes que o Diabo Saiba que Você Está Morto”, escrutinando não um crime propriamente, mas as circunstâncias que levaram ao cometimento do delito. Lumet nunca pareceu inclinado a conduzir seus filmes de maneira a agradar, e aqui confere a verossimilhança de que o enredo precisa ao contar a história dos bastidores de um roubo nada convencional. O diretor vai compondo o roteiro de Kelly Masterson como um gigantesco quebra-cabeça, seguindo o expediente de apresentar uma massa de informações a fim de que o espectador tenha uma noção — nada mais que isso — de onde a história vai dar, ao mesmo tempo em que nem a raiz do que se passou se dá a conhecer. Lumet não faz concessões, e em seu último trabalho isso conta ainda mais.
Andy e Hank Hanson são dois homens com trajetórias que não se comunicam e destinos que acabam por se encontrar num ponto cego. Andy é um executivo algo insatisfeito com a carreira que flerta com uma crise de meia-idade e tem uma mulher que possivelmente não gosta dele. Essa é a conjuntura perfeita para que continue da maneira como está, entregue ao vício e à autopiedade, o que o acaba levando a cometer uma loucura. Hank, por seu turno, divorciou-se há pouco tempo, está sempre atrasando a pensão da filha e, como o irmão mais velho, não vislumbra nenhuma grande perspectiva. Lumet tem o ritmo do filme nas mãos, e não demora a colocar à mesa o que ia sugerindo, sem rodeios. Andy intenta roubar a pequena joalheria dos pais, Charles e Nanette, o que, segundo ele, é a oportunidade ideal para se façam as reparações que considera justas a anos de apatia e negligência. Depois que Hank finalmente concorda e toma a frente do plano, acompanhado de um terceiro cúmplice, se dá conta de que Andy não calculara muito bem as chances de insucesso da empreitada, e um pavoroso imprevisto acontece.
O filme ancora-se quase inteiro nas performances dicotômicas de Philip Seymour Hoffman (1967-2014) e Ethan Hawke, metódicas em vertentes contrárias, trabalhando em sintonia enquanto abrem caminho para o restante do elenco. Andy não se furta a entregar-se a suas vontades mais fora de controle e malignas, e talvez ache consolo numa hipótese vã de considerar-se o salvador de Hank, um fracasso assumido. Delineia-se uma questão, de natureza bem mais complexa: o que leva alguém tão pacato, avesso à violência e cumpridor de suas obrigações a arriscar tudo em nome de vingança, ambição, orgulho, ou um misto desses sentimentos? Hoffman é dos dois quem leva a trama a seus recônditos mais obscuros, até que culminar na inesquecível cena de desfecho, ao lado de Albert Finney (1936-2019). Quem assiste não pode vacilar, tem de se manter atento a qualquer mínimo detalhe. Quase tudo em “Antes que o Diabo Saiba que Você Está Morto” é mistério. Exceto Sidney Lumet.
★★★★★★★★★★
 
 





 
                                 
                                 
                                